quarta-feira, 25 de março de 2009

Na Várzea de Meu Pai



(pintura de jock macinnes, "beached boats - algarve", s/d)


nascemos no coiro da burra, no lugar dos santos
entre faro e s. brás de alportel onde escrevemos
com alfarroba, o meu pai não sabia que eu ainda
escreveria este poema em ambiente de festa
comercial como este dia

somos irmãos nesta tarefa de levanta-te e anda
o pó do vazio, a janela entre os olhos e as mãos

guardo os vidrinhos da porta da Cinco de Outubro
à Estrada de Olhão enlaço-te em cada árvore da
grande avenida, bebo a água como as redes sociais

e o piano? Toca ainda em mãos livres para a
linguagem da necessidade, quero, sei, sou feliz
onde entendo o corpo novo e o ar que dele suspende

baloiça palavra para cairmos novamente de mão dada
como se o alcatrão sujo espelha o mar do Algarve
em cada várzea está o teu berço desde esse momento


José Gil

terça-feira, 24 de março de 2009

Árvore Branca



(pintura de antoine vollon, "view of a stream at sunset", circa 1874)


gostava de roer a caixa de madeira negra
abrir o eixo norte do tempo sensível
não restar nada, apenas o corpo bravo
avançando junto aos véus, é uma alusão
de prazer, um rio para articular em ti
os dedos onde floresce a pequena floresta
negra, saberemos o sabor dos coentros de
março, através das folhas só a língua
na cabeça das pessoas, vamos, avanço
na lage sobre a caixa, é o corpo que treme
longa e ampla anca, tronco sem obstáculo

canto e volto a cantar, uma árvore branca

José Gil

domingo, 22 de março de 2009

Corpototal 10



(fotografia de harno minkkinen, "kivisaari, hirvensalmi", 2007)


ao Américo

a cabeça como uma máquina que nos ataca
numa gruta, para respirar a sombra é este
o medo, o seu reino de sombras e jogos

volta a pedra como raiz da árvore no fundo
do silêncio

o jardim das amendoeiras entre as ancas
o teu olhar aparente que solta como uma
vela, já nem consigo chorar, é como um
filme, a vida passa

onde ainda o medo no lugar das mãos
calma branca energia vital universal
sou o teu canal, acredita nesta luz
súbita acredita na água


José Gil

sexta-feira, 20 de março de 2009

Dança



(fotografia de melissa ann pinney, "kanaha girl, maui", 2006)


ao Jorge

gosto de sentir os tendões nos pés os músculos na água do oceano – a pele esticada até ao suor na frescura das praias. tenho um enorme prazer em abrir os músculos. há segredos na pele. que ficam para lá dos estímulos dos neurónios ou da sabedoria da cabeça. navego por eles quando chamam nadar e eu me preocupo em aprender a sua conjugação no poema, no texto a textura

gosto de romper a roupa do tecelão e colocá-la no corpo como os piercings e os anéis.
marcam outros mundos, a pele estica as emoções sobre a água e as suas borrachas

dança comigo, o horizonte da areia não tem fim, é como a musica biológica.
um limiar de frescura no paredão, o andar descalço e sentir um pouco de tudo
para lá da pedra com água salgada.

gosto de rasgar os tendões nas pernas lisas até às ancas soltas

José Gil

quarta-feira, 18 de março de 2009

Florida



(fotografia de arno r. minkkinen, "self-portrait with sandy, tuscany", 1995)


dói a dor florida e me diz
veste o país de palavras
com corações e letras

nada fica para lá do caos
esta paixão que em mim se
entranha como uma borboleta
musical e voo permanente

a chuva era ela o sol e a lua da
tua pele. em frente ninguém
consegue reagir à tentação

a parede surda e invisível
nua, pobre, o país dos muros

vamos treme o lábio, rápido


José Gil

Incontinência



(fotografia de duane michals, "cavafy's journal" (2003-2005)


que sinal podemos estar todos perante uma incontinência
verbal – as aves constroem casas, as batas das crianças
são o sinal de alarme de ir a correr – a tardinha partiu
deixo o corpo rolar nas ondas é Março na poeira
dos caminhos – ouço aviões e comboios sem néon
uma estrutura suporte própria e direccionada

as crianças de encarnado - vivo aos quadradinhos -
correm negras na savana, canto-te a última casa
atravesso as pontes sobre as auto-estradas não
evasivas de neuro modulação ardem-me todas as
imagens nunca mais terei choques medulares
de uma tempestade a outra tempestade, perco
todos os caminhos - voei de mim a mim no fim de
linha – a tardinha está perto no corpo das areias frias
incisões na memória – mínimas – cintilas como a
minha frescura por urgência dos sensores

crio rupturas na memória – há uma ampliação
do regresso onde podia evitar e acalmar os músculos
um botoque de suspiros na alma, choramos todos
onde o lume procura o alarme dos novos vidros

pressinto-te leitor, cruzamo-nos, não ouço pássaros
muitas palavras têm um destino em comum, cristais,
onde vou inventar o fogo do tempo, dança nua na
estrada dos versos, tudo aberto amor até ao sol

José Gil

corpototal 9



(pintura de maurice esnault, "still life", s/d)


deita-me na caruma branca do meu magusto
folhas secas do teu lugar de amor, acendalha
da minha palavra sem chave do umbigo, escada
da oralidade da folha seca e fresca em forma de
flecha imperiosa

arrumo os punhos na mesa junto à claridade
espero-te namorada negra entre a pele de seda
e os morangos vermelhos do açúcar café

José Gil

terça-feira, 17 de março de 2009

corpototal 8



(escultura de albert bartholomé, "young girl plaiting hair", circa 1906)


onde o vento bate a letra na pedra
a pedra do seio em mármore negro
o óleo breve das letras do número
apenas a saudade que me prende

vibro entre o corpo e a sala
antiga memória no lombo do
aroma, bravo o silêncio do corpo
no corpo ao vento corre o cabelo

em redor dos mamilos a mão direita
bem assim inteira como a laranja e
o morango neste nascer da primavera

José Gil

corpototal 7



(pintura de fernand puigaudeau, "bretonnes aux lampions à pont aven", s/d)


ao Joaquim Evónio e onelight

onde jogo o jogo da janela
a palavra na janela bem aberta
um limão em choque com a
memória, apenas o jogo

uma flor na manta incompleta
dos teus cabelinhos crespos e
uma rosa e outra rosa nos lábios

evolui a marcha até à cidade
apenas a tua canção heróica
ouve-se ao longe a canção querida

José Gil

quinta-feira, 12 de março de 2009

corpototal 6



(pintura de henri fantin-latour, "quatre pêches sur une table", 1874)


uma tangerina de cumplicidade, toma o gomo
o quase antes que o limite, estica bem a corda
o pão e as uvas, guardo o sabor da memória da
manteiga, terrificada entre as bolachas da mentira
como um cinema, recordo a sépia o limite dos seios
as personagens, saberás tudo o que amo na ardósia

antiga lembrança dói os dedos moços no doce de
tomate – o corpo total e roliço como as aves quentes
a terra curta para o baile, roda na tua roda.

josé gil

quarta-feira, 4 de março de 2009

corpototal 5



(quadro de alexandre cabanel)


“Quando digo "meu Deus" ,
afirmo a propriedade.
Há mil deuses pessoais
em nichos da cidade”

Carlos Drumond de Andrade


Verga a varinha da senhora pelas velas
Verga o fogo na varinha do corpo aberto
Digo para dizer a areia onde o poema se
deite – é um lagar de sol e azeite, o som
dorme devagar inalteradamente, só e só

Voa rente ao mar a planar a última dormida
das gaivotas com palavras e poetas surdos
tronco, raiz descalça fonte onde verga
torta a alma do fogo reconstrói outro
silêncio – só corpo com corpo só

José Gil

corpototal 4



(pintura de charles emile auguste carolus-duran, "après la nage", 1899)


voa na praça d’ela no colo branco
escrevo-te na tua “inacabável volúpia”
entrelaço dedos e poemas como verga
fina, beijo os dedos junto à fonte
os dos pés que conhecem melhor os
mapas limpos – procuro o corpo de olho
a olho – o que quer o som na breve chapa

cerradamente coloco os dentes onde as
sombras lêem – folhas arcos linguagem
sem imagem – quem pinta branco, quem
pinta preto ou quase o grafismo da penumbra
se afirma, muito rentes os cabelinhos, minhas
palavras, meus sonhos, unidade do silêncio

José Gil

terça-feira, 3 de março de 2009

corpototal 3



(quadro de raoul dufy, "trois nu au cargo", 1939)


escrevo onde falha o colo do oceano
no longo corpo da paisagem em todo
o seu fogo, a mão descobre a floresta
a fronteira, o rio de mel, que era uma
trança de areia húmida – a caldeira do
calor azul desmente as nuvens da água

nada está parado, nó e por isso escrevo
no mais pequeno momento tranquilo da
respiração enquanto corres nua e negra
na avenida dos coqueiros, depois a água
percorre a mão de água, tímida e breve

José Gil