segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

abdicação



(pintura de gladys rockmore davis, "still life #2", circa 1950)


coloco os coentros ao sol como eu
nos bancos do jardim da praceta
antes de subir a escadaria de pedra

fugi dos carros para as cenouras e
os pepinos – estraga-me a auto-estrada
não é lenta como o amor, fico assim
com o meu sol o grito interior
e o grito exterior e a respiração do
pinheiro quente e do musgo ainda
perto "da lareira" por dentro da folha de papel

de mansinho digo dobra-te só este sol encanta
os peões como as palavras pequenas

José Gil

Sem Flores



(fotografia de lucien clergue, "nude #4", s/d)


as mãos não precisam de flores,
têm pétalas
dos dedos escorregadios
onde nasces,

seguro-te a
mão – traz muito pó das obras da rua
mesmo em
frente ao poema mas o calor das mãos
passa entre os dedos das janelas
com o pó da ama - olho a tristeza da sombra
e do
anoitecer, abraço-te com o último amargo doce

não
tenho estratégia o poema derrete este
chocolate nas tuas costas de
abraço, dobra não tenho plano, trago
o papel e rendo-me à flor
apenas um lírio vermelho e os dedos
e as ancas únicas como
a primeira vez na fatal linguagem do desejo,
são ambas no presente enterneço e sinto

José Gil

manhã cedo da alma



(desenho de will barnet, "the dream" (2002)


Dedicado a
“por vezes a lareira”

José Félix



Em Dezembro,”por vezes a lareira”
na manhã cedo
da alma inteira, o homem
no homem das emoções
profundas rente à parede
num desassossego de angústia

vago luar ainda nos sonhos
desta noite, entre a solidez
das cerejas destruíram a falta
de afecto como a tarde de
sol, batendo no outro sol do
desassossego do poema
no cuidado da limador que
comigo escreve sem metafísica
no interior da sombra dos teus
seios íntegros de Inverno
numa linguagem requintada de
tantos beijos, olho-te e
só vejo os seios da terra trabalhada
como o relógio do
descanso – vivo na realidade interior,
fascina-me a minha mão
a tua mão agora na rocha e na escarpa,

vamos subir

José Gil

quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

hortelã e mel



(desenho de alex katz, "ada with flowers", 1981)


Escrevo como quem atravessa
a pele das tuas asas
Um trabalho de hortelã e mel,
bate as tuas asas nas minhas
é Lisboa e
Sinto-a sagrada de luzes


Sonho-te noutro lugar em tudo
o que me ficou dela
O meu instinto, o meu exílio mais
nada posso dizer
Falta-me o cílio, a pedra dura


José Gil

segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

verão



(pintura de willem de kooning, "the kiss" (1925)

o verão que chegou é o teu corpo
a tua boca ferve, a tua alma
queima em pingos de suor
em plena época das castanhas.
a fervura da tua língua percorre
o teu corpo findo no meu corpo

procuro-te como a trovoada de
ontem, altas temperaturas no
corpo alagado em trinta minutos
hoje a alegria do sol quando vens na
estrada já me aquece os pés
como muita gente tenho os pés
frios todo o ano, cheiros e
caminhos a perder nas piruetas
do discurso do poeta, quem não gosta
do corpo da mulher crua e musical

José Gil