segunda-feira, 28 de novembro de 2011

corpototal 57



(fotografia de marc riboud, "eiffel tower painter", 1953)


escrevo aos que me observam
levanta-te e põe-te de pé
dança aí no meio da mesa
a saia cada vez mais larga
e grande pronta a saltar a
cabeça contra o mar, estende
a mão traz-me a espuma da onda
e nos dedos a certeza que a poesia
está sã, nunca tive segredos azuis
dançamos depois todos no horto
o inverno está a chegar, já não
vaza a saudade, o amor nunca se
escolhe, sei nada, uns calados
para os outros em aparição a lã

José Gil

domingo, 13 de novembro de 2011

corpototal 56



(fotografia de tiziana & gianni baldizzone, 2006)


vamos ser positivos entre as canadianas cinzentas, e negras
o pé no ar, a sala está quase escura vejo a literatura como
o fim do dia a mão arrancando de uma só vez a pele da parede
tudo se descobre como o sangue dos tijolos, o mel do cimento
quente, a volatilidade do fim do dia, desce quando começa, o princípio
do corpo quando não há outro para fazer arrebatador, na voz única
o corpo debruçado ao topo num primeiro plano há ainda tulipas violetas
espalhadas no pau preto, a dureza da madeira incontornável, superior
ao castanho, o perfil selectivo, ondulação, deslizar como um animal
dou o pé ao meu olhar, a mão limpa na parede, vinho escondido nos trilhos
da janela da manhã em istambul casa erguida voa até aqui no mar

José Gil

quarta-feira, 9 de novembro de 2011

corpototal 55



(fotografia de lawrie brown, "red-spotted ficus: japanese pine and false aralia", 1990)


Louvarei a tua boca quando amanhecer
E deixarei o pó nas janelas ao sol, tranquilo
azul e branco "vigia a porta dos meus lábios"
Boanerges, atravessa ainda o céu e a terra
não sejas a blasfémia mas o aprumo da palavra
estás fora de ti, fica como ele a guardar os jardins
quando já os teus ramos anunciarem as novas
laranjas e brotam flores e folhas então o verão
estará próximo como o meu corpo do teu cada
vez mais negro ao sol do lençol da areia fina
não passará este tempo sem o abrigo dos barcos
as minhas palavras doces não passearão no recinto
nem os anjos do céu, em verdade te digo, ouve tudo

José Gil

segunda-feira, 7 de novembro de 2011

corpototal 54



(fotografia de rolfe horn, "coastline study 3, chiba, japan", 2008)


há um aroma que chega do sul
a palavra chorando de saudade
há uma voz que vem no aroma
com as suas velas, é o rio, barco
erguido a janela de flores da minha
vida, há um aroma que vem nos corvos
agulha picando todo o corpo sobre
a mesa descansada, há outras janelas
no ar do enlaço do mar uma guitarra
há um quadro minucioso e negro na
saudade junto às persianas brancas
é polido o céu deste outono de água
plenamente os seios uma palavra qualquer
um aroma para respirar moribundo
peregrino no caminho das fontes

José Gil

quarta-feira, 2 de novembro de 2011

corpototal 53



(fotografia de ruth bernhard, "draped torso", 1962)


sabíamos o que era a saia
no mais curto pano
no mais florido e armado campo

cantamos o vinagre nas bolhas
que jovem ouvirá amanhã?
longo e amplo dia como as omoplatas
do corpo em vão, já afasto mais os
meus passos fica mal no timbre das sílabas
chorar a solo na plateia, sabíamos qual
era a nossa religião de fiel invenção
cantamos onde se bebe e bebe lentamente
o hábito da tristeza, são quatro ou cinco balas
sem palavras tão duras na passadeira
intermediária a página presente, o corpo
ausente como as janelas débeis o poema é
insonoro, racista, solitário, raivoso, rude
pouco ou nada há mais para comer

josé gil

domingo, 30 de outubro de 2011

corpototal 52



(fotografia de ruth bernhard, "hips horizontal", 1975)

queria tocar o eixo do sol, o que faz a manhã
no teu colo de amor e carinho, quero o teu pão
da sensual ternura dos dedos erguidos e das
suas flores, beijo cantando os teus cones negros
e todo o alçapão em que me levanto, quase
não vejo os anelantes da felicidade do dia
em gelatina fatalmente suave e rápida

regresso ao principio, tudo no inicio o próprio
beijo, amo tudo o que começa na beleza negra
a fenda voluptuosa das sensações suaves

beijo-te na cálida manhã o translúcido rio de
leite que te atravessa, como os frutos da gravidade
perene tardinha em Lisboa junto ao rio refrescante

José Gil

corpototal 51




(fotografia, "um cacilheiro em cacilhas", retirado deste site: http://drengo2.blogspot.com/2008/02/nevoeiro-no-tejo.html)


“não sei suportar sem um amigo”
Rilke

o nevoeiro do tejo enrola a manhã de outono
descobri assim hoje como foi difícil mudar a hora
em redor de um outro tempo quantificado na tímida
confusão do claro e escuro, da manhã e da noite

oiço crianças de madrugada entre o choupal e o rio
a noite acompanha em lençóis cinza a solidão
e desce do céu como um único oceano

não quero falar mais dele
separa-me em horas ambíguas
segredos e distâncias

quero só na mesa bem larga sem a lâmpada
penetrando a cabeça de luz

José Gil

corpototal 50



(fotografia de mona kuhn, "emerging boy", 2009)


escrevo-te no rio do tempo
com o tempo nas margens
e ainda a casa da erva
junto à flor do ouvido

abre a erva doce ao umbigo
da chegada, nada é para lá
do tempo – o sacerdócio

bem junto ao corpo nu
a meio da paisagem entre
o verde da erva e o azul do
mar – a parede crua

José Gil

terça-feira, 25 de outubro de 2011

corpototal 49



(fotografia de robin schwartz, "tower", 2006)


"Venham até a borda, ele disse. Eles disseram: Nós temos
medo. Venham até a borda, ele insistiu. Eles foram. Ele os
empurrou... E eles voaram."

Guillaume Apollinaire

Rapidamente alterada a manhã e a chuva
Nas lágrimas no peito negro, imenso espaço
Casa erguida como a poesia entre as urtigas
E a madeira da mesa, vinho pouco contido

Estou deitado no edredão branco contigo

Ninguém me ensinou mas gosto da aragem
E dos teus dedos longos nas costas, na sua
Clara plenitude de relva vermelha, a luz
Esvanece, atravessa agora comigo o turbilhão

Os cegos, os surdos chegam como anjos e voam

José Gil

domingo, 9 de outubro de 2011

corpototal 48



(fotografia de prying open, retirado da série "po's burn town", 2011)

(ao José Félix)

o que sobe do fundo, o que empurra

as nuvens com as duas mãos, onde
o clamor do rap abre o alcatrão no mais
profundo negro,

a luz da voz, que atravessa
o cérebro, disperso no centro da roda

canto o rap para contestar a polis
no meu descontentamento com
a força a força do corpo a corpo

alguém trata da história do poema
entre a Cova da Moura e o seu espelho

terra a terra, quanto fogo ainda há
sob as palavras - as tuas mãos nasceram
nas minhas costas há muitos anos
não as poderei afastar dos pássaros que
lhe chegam com espelhos de narciso

os salpicos desse ecrã táctil que alcanço
com as novas mãos um pombo, a revelação

como o cantor rap peguei estes versos com
as mãos os mais bonitos sinais do corpo vivo

José Gil

corpototal 47



(fotografia de filippo scarpi, "awakening 2", s/d)


Sem ritmo, sem lugar
com o torso da rua encantada
muda e nua cega de desejo
escrevo-te sílabas silvestres
entre amoras sem almas serei
apenas esta palavra da língua
espessa – conhecerei todos os
teus lábios, um organismo negro
entre a música ritual e uma palavra na
garganta até sufocar em gemido
como quem conhece o grito da libertação
sou o homem que imaginou o pão e o
vinho como sombra na grande mesa
vibrante entre as duas mãos rápidas
o corpo amado seguro e molhado

José Gil

sexta-feira, 7 de outubro de 2011

água do madeiro



(fotografia de debra bloomfield, "untitled (from oceanscape series)", 2000-2001)


no litoral limite da erva do mar
onde a mão só chega ao tronco do ar
e treme porque já vagueei o sol

os longos cabelos loiros espelham
no oceano revelam o brilho das aves
que voam um dia procurando o belo
fica esta musa falando do amor frio
da água. só eu em fogo posso perceber
este inicio do dia

este início do poema dionisíaco
onde o sexo é o sabor da vontade
rompe do pássaro e das rochas

são as rochas que ascendem do mar
não o véu de espuma que
amanhece nos dedos
no declínio do céu no mar dourado
abre-me com a festa divina da pedra amarela
e só dói no doer já junto à areia
quando o mar bate junto à pedra
e bate no mastro dos aviões
o que pela espuma se dobra e ascende
mastro livre libertário das marés

trago ainda a loba negra ao lugar do mastro
o sol lentamente dobra as curvas
do alto do céu e da brisa
dói o que a dor não perde

a dor só perde quando o resto se encontra
o corpo, a vivência, o temor
- há uma sementeira de algo
no chamamento fácil da gaivota
e nada mais

tudo responde por detrás
do nervo dos olhos

a tardinha a casa abre a sua folha
e a égua de dossel claro
faz a sombra na areia
ninguém a levanta à altura
da janela que se abre ao canto
e o lugar fica para a árvore

Constantino Alves, Jorge Vicente e José Gil

(Água do Madeiro - Leiria)

domingo, 2 de outubro de 2011

corpototal 46



(fotografia de ansel adams, "cracked white paint and board (wood and whitewash)", 1970's)


“A forma que carece de ritmo é indefinida e deve ser definida ainda que não seja em verso, já que o indefinido é desagradável e difícil de entender”

Aristóteles



as leis dormem no mais exacto instante dos morangos
à flor da pele nos seus deleites de memória já que o
individuo foi substituído pelo homem comunitário em
todo o deserto entre girassóis de literatura das areias
integralmente animal no eixo da sorte nus mas não
invisíveis, pensa-se depois não será sempre assim no
murro em redor da casa no sofrimento eterno indescritível

"e nada mais ouviram nesse dia”(1) nem um digno
meio entre as catástrofes, nem um tecido de sombras
partilhado com os ecos, nem a chave apocromática, a
analogia e a metáfora nem a genética dos sabores, elos
da sociedade antiga tão global tal como as moléculas
mortas tautologicamente substituídas na totalidade e
no infinito da evasão (2) – amei-te natureza nos fins
com os seus concomitantes na sua capacidade fruidora
da natureza multicoral com os “apocalípticos e integrados”(3)
na compaixão (4) pela terra onde derramas sempre o teu
sangue numa tarefa ciclópica com um imenso matadouro onde
a poesia é apenas do domínio das incertezas – uma casa sem
portas com o corpo nu no umbral azul e o mar em espuma
na última parede aberta, instruiu-se a casa, o vestido, a
máscara nua e negra onde tudo fica azul eterno
no enciúme dos pastores de palavras nos abismos
da oratória épico - bíblica de raiz comum – somos
pássaros, anjos ou plantas para ordenar a calidez
das paredes e das portas abertas, nus nos umbrais com
descuidos da poesia da terra sem pensar na totalidade da
informação afectiva desde o cristal até ao fumo acirrando

com os teus mamilos negros de língua sob a romãzeira
num pensamento imaginante distinto dos polemos seciantes

“o zero é o infinito”(5) na dialéctica negativa das cruentas
memórias na banalidade das indústrias do mal

“e nada mais escreveste nesse dia” ante o falar sempre
para além das brumas do tempo, dum provir indeciso
puxado pela paixão no lume que esmorece na lareira dos signos
complexos e intímos ante a atitude da escrita sempre sobre a pedra

José Gil

(1) George Steiner

(2) Emmanuel Lévinas

(3) Umberto Eco

(4) Leonardo Boff

(5)Henri Atlan

segunda-feira, 19 de setembro de 2011

corpototal 45



(fotografia de brassai, "torse" , circa 1934)


(a mar)

o que sobe pela chama
tem o aroma de sombra
das palavras, que ondula
no teu corpo, os contornos
dos lentos dedos na profusa
erva doente, as tuas mãos não
conhecem ainda a pele real
onde tudo se funde na visão
dos cegos até a raiz da alma
que nasce
todo o dia

ele é a onda que nos prende

saberei a força do primeiro beijo

José Gil

quinta-feira, 15 de setembro de 2011

corpototal 44



(fotografia de berenice abbott, retirada )


“Eu vi a luz em um país perdido”

(In Clepsidra, Camilo Pessanha)



Ele é um tigre. O papel da fonte.
entre a água e a folha
se procuro a noite
ninguém fala dele
ocultamente


O país de minhas irmãs suavemente
Meu pai escrevia
Meu irmão escreve

Eu apenas amo tranquilamente
a ponta leve da caneta
na brisa de Leiria
maçã e laranja
formam o seu
pomar

Não sei em que mês ainda estão
O pensamento renasce
com o dia

sei, já sei que ele é o tigre de papel

José Gil

sábado, 3 de setembro de 2011

corpototal 43



(fotografia de rafael navarro, "diptico 26", 1979)


estou no declive como a santa palavra
suspensa por dentro do poema, perdi
as estrelas da garganta, adormeço no teu
seio à tardinha, adolescência e distância

quem não ouve o clamor da deusa azul
no intervalo das sílabas intactas e presentes
como se a língua tocasse o declive e o plano

quem move o corpo a sair da nuvem escura

santa palavra como se tudo ficasse por dentro
e por fora do poema como uma única montanha
as estrelas regressam à adolescência da garganta

José Gil

domingo, 28 de agosto de 2011

corpototal 42



(fotografia de toto frima, "p1030567")


as laranjas, o que desce ao fundo
nas cores claras do morango que
não toma o nome da cor, o que
ondula do teu corpo na laranja
da flor ao fruto os recantos, as
regiões santas, as veias, as teias
felicidade conjugada entre o que
cintila e adormece em parâmetros
paralelos não sendo mais que um sopro

dói a ausência do morango dos teus
cones negros

José Gil

sábado, 27 de agosto de 2011

corpototal 41



(fotografia de lucile le doz, "la passion"


levemente, eis que os dedos tocam-te a face
não sou nada apenas o poema talhado e todos
os lábios incandescentes e atràs dos dias uma
palavra de dedos sépalas numa visão realista
ideias na devida altura da devastação da aventura
o mel toca todas as estações levemente, o mel
entre os dedos junto à fonte, a fome de vidro
as laranjas no vidro da grande mesa negra, a
mesma flor de laranjeira em vidro, pinto as
paredes e os jornais defendem o solo das gotas
perdidas da tinta, talvez um poema em cada
jornal na face oculta da talha da parede de línguas
incandescentes no concreto urgente da flor

José Gil

agruras




(fotografia de charlie jouvet, da série "the tributaries", s/d).


será este o meu aroma, faltou-me
apenas a tecedeira dos anjos, sou
curgidoso, como o actor que apareceu
na perna do palco estava a mais
e apareceu na ligeireza da luz
correu com flores de saudade azul
o telhado era alto como a casa
porque é que estou a escrever
o que estou a escrever, o dia livre,
a noite pesada, esqueceu o vago manto

ela avançou e saltou tudo não
passava da esteira da saudade
só a carroça – tem que ser a mantilha
cuido os teus artistas, ficamos todos
com o sol na janela larga da claridade
e logo deixas de falar – o palco vazio

tu achas que a actriz vai chegar e saltar
como a velha da carroça da palha

José Gil

sábado, 16 de julho de 2011

corpototal 40




(fotografia de charlie jouvet, da série "tokyo. 39", retirada daqui)


a chama gélida do corpo doce, o santo azul
deserto vazio onde o corpo se rebola e negro
se toca no gelo da chama de contornos leves
da fibra doce do fundo da cinza do deserto
gélidas as cabeças outrora cordilheiras evoco
os lábios da primavera basta um só toque da
chama azul, silencioso deserto de face iluminada

é a reza e só a reza da pedra na areia de joelhos
o santo azul regressa ao gelo da sombra da
catedral – o franciscano avança e só reza

josé gil

sábado, 25 de junho de 2011

corpototal 39




(trabalho de richard long, retirado daqui)


o olhar fixo na tábua, o sol ilumina a chave
a tábua voa fixa no eixo da chave diurna
na miragem do sol, tudo gira com o olhar
da janela o sol traz-me a luz das pernas
vou olhar a miragem e perco-me no eixo
sou a tábua cega que voa no prado ao sol
há ainda a janela presa a figura em mãos
abertas, um suspiro do alto do candelabro
o sol voa por dentro da lâmpada e choro
nos teus cones as tuas pernas esguias na
sombra do eixo sob o sol e a tábua – olho

José Gil

quinta-feira, 23 de junho de 2011

um quase epílogo



(fotografia de sharon core, "early american, still life with stripped bass", s/d). retirado daqui.


toco o osso, o braço longo
onde dança a mão, como
um pequeno baile para pessoas
muito pequenas, velho anão da
minha infância dança o tango

ela dança também aos ciúmes
do maior, o girafa, junto da
pequena bravura de um convite

no formo o osso assa como
o braço do pequenino e
todos dançam toda a noite

chega para lá do mármore
cai até que doa a infância

toca a estrada do batom
vermelho e dança ainda
em hortelã o peixe coze
contra as batatas e a
caldeirada onde em cadeiras
pequeninas tudo descansa
e bebe um delicioso sumo
de tomate, a caldeirada
destrói o baile, depois dormem
na cadeira pequena por um
Deus anão e uma janela quente

José Gil

sexta-feira, 17 de junho de 2011

corpototal 38



(fotografia de ryan mcginley, da série "photographs"). retirado daqui.


“A lei que me fala e que me leva
a desobedecer-te é outra;
é a lei segundo a qual
toda a vida humana é sagrada”(1)

beijo-te, são de veludo os teus lábios cereja
sobre o mistério da estrela cadente que vai
perder-se no teu colo de uma vida, repouso
no teu rosto num barco sem porto, é onde
a ligeireza do sacerdócio azul eléctrico desta
árvore selvagem que / onde ninguém sabe onde vai
parar a onda vestida que desenha linhas verdes
franciscana, desfolha-me num jeito de não parar
eu também sou do varejar das cerejas dos teus lábios, vem
onde te quero lavar em leite, para eu cheirar
um leve aroma para poder lembrar o corpo da
tua voz, denso como pedras lisas de tanto esfregar

não sou capaz de estar tão perto e tão fora de ti

José Gil

(1) Goethe - divulgação Teatro da Cornucópia - Postal

terça-feira, 14 de junho de 2011

corpototal 37




(pintura de isabel bigelow, retirada daqui)


“inventa a rua a casa
a gente dentro”

José Félix


escrevo poesia desenhando um território
de flores em sombras de coração vermelho
e romãs em cada dia claro – amo o eco a luz
é a completa nudez no sobrado do quarto frente
à janela na ligeireza das tuas ancas de mistério

cavalga sem pulso, sem respiração, sem gemido
todos olham mas só eu entro, como rumor de
sílabas ruas casas cavalos bravos na escura terra
eu que sou poema verde que ainda salta para a voz
ficam as silhuetas e as sombras onde há o sangue
o ar, sem fantasmas e sons adversos ao rosto azul
bebo o sol, pedra a pedra no desenho das cobras
no chão, apenas chego perto, é como uma língua

José Gil

segunda-feira, 13 de junho de 2011

corpototal 36



(imagem de um filme de cauleen smith, "still from elsewhere" (2010)


“Julgamos que viver era abraçar”
Sofia de Mello Breyner Andresson

“Que cada frase em vez de um habilidoso
disfarce, fosse uma sedução (...) e um acto
sem subterfúgios. Para tanto limpo-a
escrupulosamente de todas as impurezas e ambiguidades”

Miguel Torga



estou aqui onde começa o turbilhão pela densidade do amor
basta os teus cones ao tronco iluminado - único arco doce
sabes: tudo és tudo na espuma das ruas e do centro azul
eu serei o que disserem no rasgão denso de que sou o que
não sossega o corpo soberano – espero o milagre das coisas
uma luminosidade negra vem sempre o brilho da pele no aroma
de mais uma imagem – o que te revela em Dezembro no oceano
sobre as cidades onde libertas a esperança, o sangue e o sol
sei quem és, de onde vens, o teu corpo chega a uma experiência
da magnifica imagem, um volúvel andar rumo ao novo ano
o abraço do rosto que eu adoro, morde ainda os dedos, serei
o palácio incansável mais vagaroso e queimado do verão passado

José Gil

quarta-feira, 8 de junho de 2011

corpototal 35



(pintura de kaye donachie, "tender and gone to seed", 2007)


deixei-me levar lentamente pela ignorância
gostava muito agora de me apaziguar, não
há mais capítulos para abrir nesta casa, tenho
ainda um gato azul, lentamente toco a tua face
choro no lençol do oceano, não és ninguém
para este cântico de lábios de verão quente
ninguém és tu um todo na lucidez da ignorância
cor de cereja amor rosa escuro do meu núcleo
és tudo o que lentamente deixo no lugar da flor
bosque de ausências, não secreto, diferente
adormecendo na arte da palavra amada o que
escrevo nestes dias longos – entre os pássaros

José Gil

sábado, 30 de abril de 2011

inverno



(fotografia de justin visnesky, retirado da série "a new morning", retirado daqui)


onde o mar toca a letra e se prolonga na flor musical
a luz é viva como a casa – um eixo de claridade no
telhado vermelho sobre o mar – voas comigo
há um ar de partir, a lua mais velha da sedução
prolongas depois o rosário transparente no teu cabelo
longo como as grandes chaminés do teu palácio

vivo e vivo onde veio cantar o teu seio lento na
foto vertical, não seguras os lábios aos meus
nas folhas brancas do teu calor, abre-se a pedra
e tentamos o cisne branco no teu jardim - é o Inverno

uma casa ainda transparente ouve-me sempre

José Gil

segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

poeta e exílio



(fotografia de julia margaret cameron, "elizabeth keown, kate keown, and freddy gould", circa 1866-1868"


Está tudo vazio, eu que esperava tudo belo
Vesti o fato e a gravata e aqui estou para te
Receber como a terra, és a mulher, o soldado
Avança, avante mãe da esperança, traz no bolso
A bomba - conhecem-te todos do castelo de
Leiria e aplaudem – já todos os dias acordas cedo
Ou não dormes só ouves ruídos, passos, sais
Para a quinta – vais para a guarita e ninguém te vê

Traz a terra e almoça connosco, a terra está branca
Venho de vieira e transporto dois exílios, três
Tu, eu e o poema nem sei o que somos, há para
Lá outros, vivem incógnitos
Amam

Mesmo vazia sempre gosto de ver de saia rodada
Junto á lua, vamos combater para o Iraque e o
Afeganistão ficam aqui tão perto, vamos e amas-me
No teu silêncio, não sei o que te disse Deus de madrugada

José Gil

terça-feira, 25 de janeiro de 2011

conservatório



(fotografia de silke seybold, "ballroom", s/d, retirada daqui)

sinto no lábio
o fio de azeite
do teu poema
como que vira
o corpo na madeira
bem encerada
só um poema
no conservatório

o instrumento

danças e danças
enquanto se ouve
a sala de canto e
as aulas de piano
quantos elementos
guardamos sobretudo
da dança

um edifício uno
das artes integradas
agora por feridas

vivemos lentos
na cidade, no bairro
sem teatro

José Gil

as abelhas incompletas



(fotografia de michael gray, "reeds ice", s/d", retirada daqui.


um corpo longo na areia
um programa de sentidos
mais do que palavras azuis
o seu mel e as suas abelhas

caminho nas palavras
do teu colo em braille
só de olhos fechados
sente-se com a língua

lê-se vagamente o sol
como ao meio dia

José Gil

domingo, 23 de janeiro de 2011

fado ventinho



(imagem de ana moura num concerto)


à fadista Ana Moura

nem por pensamento a rosa murcha logo que amanhece
nem pelo caminho do pensamento sobe e desce em lisboa
tinha de saber ainda o teu sabor, baila pelas sílabas na boa
do entretenimento dos espantados com real beleza

há ainda as sete colinas, duas das tuas costas nuas
quando me vejo só o que não é sempre coloco
as rosas na estrada e tu chegas sempre como o bloco
onde escrevo sem acabar-se de vestir e mesmo assim esvaindo

o seu juízo, o seu calor, o seu respirar o seu pensamento
sabemos o caminho e sabe-se o caminho por onde
chegamos à casa no meio da cheia, só e somente

vendo-te não descansa o luar à roda do ventinho
canta para mim um fado maior nem por pensamento
só a voz e a cama e o rosto vincado da poesia e do vinho

José Gil

segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

corpototal 34



(fotografia de vicky slater, retirada daqui, da série "out of time")


nome e utopia, vibro o tempo de verga de um instante
não bate ainda o coração, apenas uma brisa activa
obscurece o filigrana para ti

entre aranhas desobedece o fogo à mão discreta, um par
quase rumina a moça linda cantando o sol que fica
entre o mar e as pernas

na tua cripta procuro ainda a folha intacta do ar cativo
adormeci no teu colo de aranha, nome e verga clara
o coração cai.

José Gil

roda ao vento



(fotografia de horst p. horst, retirada daqui)


vem amor descansa no meu calor
o tempo é positivo, já não chove
o inverno é longo e as flores
voltam dentro de três meses
ao teu colo de piano de cauda
como Adorno toca e escreve

no moinho descansa o sol, vem
a rua é fria, a carne quente como
a casa dos teus seios sempre à
janela, fecha os olhos e espreguiça
deixa-te espreguiçar – só eu te vejo
vizinha do prédio em frente
na tua camisita que roda ao vento

os apartamentos resumem a praça
há uma grande fusão de silício
este papel pode ter um potencial
de erguer as ondas do som, uma
simples folha que passou a hortelã
do teu corpo em creme gordo
opera no meu colo outra festa de
orquídeas fortes e rápidas

a ciência projecta rapidamente o novo
vou ter que recomeçar num terreno
positivo, ri, solta-te numa agenda
transnacional as flores dos mamilos
há dois novos níveis de volatilidade
espelha dos teus cones negros e rosa
lisa como a pele negra em óleo
suporto os níveis de risco

pára de fazer dormir, olha a minha
estrela preparo o teu boquet como
a neblina da noite à espera que o sol
chegue o meu amor está do outro
mar, todo o mundo me pergunta
do outro lado circula a música
do sangue nas suas pulsações

corre amor eu não sabia como
gostas do vento contra a alegria
do vento, chegarei no fogo da
internet na música popular

querida que a neve não te atrapalhe
no ritmo poético, na melodia na duração
todo o corpo na inserção das minhas
longas pernas evitando os intrusivos
dedos mágicos o essencial é o contacto

José Gil

sábado, 15 de janeiro de 2011

o peso da alma



(fotografia de édouard boubat, "rence sous la neige", 1955


Ri-te, na última lágrima em cristal, ri-te
a terra fica bem arranjada mesmo junto
ao beiral, entrarei no rio gelado, é hoje
a terra roda toda em cada gargalhada

há um fio de azeite para cada corpo
e o café solto, ri-te por dentro onde
só se vê a liberdade do peso da alma

José Gil