sábado, 31 de janeiro de 2009

como se chama este poema - 4



(pintura de gustav klimt, "floating female nude", 1885)


A preferência por um verso curto, um esboço
o desenho apenas da mão e do dedo, um rabisco
no lume lírico do teu corpo, música a abrir, o prato
ambientes de repouso, o teu corpete branco em
corpo negro, as franjas, vamos por vielas, eu
descasco as tangerinas e o dia é aberto ao sol e à
chuva, a minha loucura é andar sem rumo, ir fora
na dinâmica da fisionomia do teu corpo colado á
parede, desenho-o como uma toalha de linho puro

Do sofrimento agudo em que vivo, dói onde já doeu
Modelo os soluços e prende-se a garganta à lágrima
transparente como vidro fininho de uma célula

No desamparo da esperança, caminho já ninguém fuma

José Gil

Crash 29



(fotografia de robert mapplethorpe, "lisa lyon (legs)", 1981)


almas cinzentas sobre o prato dos desassossegos

como um falcão redondo voando na ideia de um
homem através de uma liturgia, falo da vida e da
flor do sofrimento, poucos me ouvem falar da
casa perdida da morte – o segredo: se não dizes
a bem dizes a mal, quando volto a escrita nenhum
verso foi apanhado com a boca na boca – só um
terno queixo – onde fechado fico no cubo verde -
cada voz contra a parede, onde ficamos todos perto
uns dos outros lá em cima ou cá em baixo bem no
sótão – “obrigado por existir” crash claro em ruas
estreitas e escuras, porta sim porta sim do existir

terra proibida ás cigarras e aos animais de devaneio

José Gil

Crash 30



(fotografia de james abbe, "jackie coogan (1914-84) in the kid, hollywood", 1920)

a mja

eu só quero ouvir um pouco a tua voz meu pai
era surdo minha mãe era surda, no castelo da
casa nunca lhes ouvi uma palavra, uma pausa
crash o que podemos dizer de nós quando o
poema avança na estrelícia encantada da escrita
de meu pai “eu só quero ouvir um pouco a tua voz
filha" de todos os santos bordadeira da língua
portuguesa como quem espera um filigrana de
orelha, nada mais tens de dizer desde criança – a
palavra falada no recanto da ladeira velha, deixo
que venha a mão aos lábios para sentir a sua
respiração quente como os lençóis no inverno

inventa-me uma outra infância, não te ofereço a rosa
desta alma como beijo de quilha e fósforo

José Gil

como se chama este poema - 3



(trabalho de aimea saul, retirado de "imagery IV" neste site)


Escrevo esparso e irrelevante no sublinhado
preconceito violento azul e violeta e iletrado

Na disfónica vida da falta de atenção cruel
em forma de língua limpa e formal – mundus -
cíclica e eterna primavera na indiferenciação
da blogosfera azeda da foto do nosso tempo

José Gil

Como se chama este poema - 2




(trabalho de aimea saul, retirado de "imagery IV" neste site


A dor enrola o aço da esperança

Só a lua da pedra na noite só
Enrola a garganta, desce e vibra

O autor procura a sua alma entre
A rua de cima e a rua de baixo

Do seu quadrado geométrico
Regressarei pelo bosque onde
Sem aviso, que venhas ao perto

Nenhuma voz na dor já sem voz

José Gil

quinta-feira, 29 de janeiro de 2009

Crash 28



(pintura de hans gustav burkhardt, "untitled (hb-048)", 1972)


o vaso sagrado da arte, engulo o sol, de argila a mãe
estratégia de mosca, do olhar estereoscópico e do voo
contra todas as sombras, adivinhas, chamam-me velho,
corpo estancado entre o coração e os pulmões, ofereço-me
para o último turno, antes e depois do terramoto o brilho
que faz o vaso sou espectador e actor deste caso
mastigo os morangos no vaso, engulo a argila na estátua
da minha mãe, teatros desacertados, levo-te a máscara quando
passeias na linha do Mondego na tua bicicleta azul de
verdura , como se fossem milhões - olho-te de novo
nas vielas – tu dentro do dia do corpo – negra e quente, magra
com leite, vamos, avança na terra que brilha desde
a criação do poema único,denso,na espessura vegetal, branca

José Gil

Como se Chama Este Poema - 1



(pintura de otto bachmann, "harlequin lovers", 1962)


a casa está ao sol, aberta com o soalho
lavado das emoções mais simples. quando
riscar a palavra na minha boca na pedra
da mesa no fundo do corredor - a casa vai
estreita de rua a rua a luz azul do algarve

quem quiser ouvi-la há-de perdê-la na montanha
sagrada, descansa o monte de Vénus, estou a ver
os teus lábios repousados - no que escrevo
encontro-te e recordo-me dos pés na língua

desenho-te assim, esmero-me no oficio do teu mel
vou ao lugar das aves frágeis como eu, as gaivotas
fazem o céu negro é de noite e choro de noite
as lágrimas límpidas da alegria, no eco da sombra

José Gil

quarta-feira, 28 de janeiro de 2009

Crash 27: Lisboa Mãe




ao Constantino



a geada passa a manhã é fria, avanço no comboio para fora de mim, da pele
levada – para fora da cidade diante de uma planície de sal – praias do sado -

leio em teus olhos, quando ainda alguém te disse - estavas sentada
repousando os lábios, escrevo entre dentes, pequenos grãos das flores

os teus navios entram no teu corpo santo, a guitarra toca, cá estou na outra mesa
de pedra onde cresceu o vento pensando na próxima folha de mentira logo
que ela vem vai num instante. o Deus contempla a flor com recordações do
passado, a flor não cai, a pétala sorri, a mesa está permanentemente incompleta
já chegou a minha mão direita à tua face, o olhar deste primeiro mundo decadente

ultrapassado os lados e os cabelos, beijo-te a nuca, abraça-me na minha solidão
inquieta – eu, ainda dentro da manhã sem saber se me demoro por momentos
arrepia a “carne rosa viva” por momentos a minha planta dentro de ti, na mesma espiral
negra e romântica na melodia, onde um dia vou adormecer e acordar no aroma das flores nas areias calcinadas da boémia.

os aromas misturados num só perfume, os Açores na Praça de Espanha na preguiça das vacas – oiço a voz de minha mãe que constrói o seu dia. Subo à mesa,o tampo range passo a passo sobre os fritos de Natal – tento reabrir a luz – ficará a porta sempre
aberta neste escuro – lisboa já é outra que não sei no rossio crash “tropeço de ternura”, a brancura dos corpos minimalistas, perfumes negros onde já não há limites muito severos, ”Lisboa a labareda vã das gargalhadas”, gostava de rir toda a tarde em canções de redenção, sem palavras, máximo conforto – tenho saudades de uma acácia no olhar, uma bússola que me ofereceste em África – “ a poesia é um eco que convida uma sombra para dançar. “ (1) Amjad – palavra árabe para a maravilha da capital

transporto na face o esplendor da linguagem com as árvores de fruta do inferno.
desenho-te numa casa cinzenta, posso sentar-me debaixo das árvores dentro de um cubo mais claro – verde germinação celestial – o homem já se ri consigo para tornar falo o poeta de Lisboa em portas entreabertas e circunscritas.

quando a cidade me chama entre a arte, população e território. Vem capital do Tejo, eu te escolhi na senda da alegria, colcha de retalhos coloridos de uma guitarra mar osa e pombas brancas pousam nas pétalas dos meus dedos oceano fértil e curto

José Gil

(1)carl sandburg

segunda-feira, 26 de janeiro de 2009

Crash 26



(pintura de robert therrien, "untitled 4 (suite of 8), 1995)


“ toda a definição universal
da Arte é definição daquilo em
que ela se transforma”.

Adorno



Os teus seios de creme na incompletude do devir, rente à pedra
experiência de verdade em que o sujeito se transforma, na relva
pura do campo, joga por mim a palavra única, a essa fronteira branca
o cavalo “varado” atestando a ligação não ocasional entre hermenêutica
e estética. o lugar da denegação do mundo suburbano procuro-te onde o eu,
o outro, o nós e o mesmo cavalgam no entendimento da ascensão do “indivíduo”

realidade factual, cortes abruptos, sinais antecipatórios, fracturas da
noção de Autor, na sua volúvel gestação de amoras no teu umbigo

deixo-te a lágrima animal no que és ainda virtual virtude de domingo

José Gil

domingo, 25 de janeiro de 2009

O Saber



(fotografia de sascha weidner, "aurora II", 2005)


ao Xavier Zarco e a Mar

o saber alegre bate a palavra-pão
a cidade desenha-se em pó azul
então já não há nada para dizer
apenas o limbo cortante do silêncio
avanço nas linhas e nos lugares
da pedra seca, bato a batida dos dentes
onde a palavra salta, matriz única

é o silêncio ainda que oiço
aqui rente ao chão do sol sem sombra
deitado na folha húmida onde bate o
dente até à entranha do mar, sereno

José Gil

quinta-feira, 22 de janeiro de 2009

Crash 25



(fotografia de vanessa beercroft, "performance", 1998)


ao Jorge, ao Félix e ao Evónio


sobre os joelhos, nos joelhos, a procura do lábio
e da ferida na língua do muro, entre a face e a face
para lá do beijo, crash, doces as pedras as cerejas
e as framboesas no teu umbigo largo, a casa abre-se
de longe em longe, e os animais, ama-me como o cavalo
no verde crespo negro no esplendor obscuro
negra linda linda com óregãos de Silves e bem
amada, dona, a teu lado vivo a respiração cresce
a lágrima da cevada solitária, os cruéis dias, detrás de
mim dorme acercando o branco em sua folhagem quente
sobre os joelhos abre o sábado e o domingo tardes reais
onde me falta o tempo e amor meu no medo do oceano


José Gil

quarta-feira, 21 de janeiro de 2009

Crash 24



(imagem de jean-luc mylayne, "nº 367, february-march 2006", 2006)


... “O Teatro pode ser praticado
mesmo por quem não é artista,
da mesma maneira que o futebol pode
ser praticado mesmo por quem não é atleta”

Augusto Boal




“Aprendemos através da experiência,
e ninguém ensina nada a
ninguém”

Viola Spolin


“O conhecimento que não é obtido
através da experiência pessoal, não é
totalmente conhecimento”

L. S. Vygotsky


Eu escrevo por fome, estefanilha ardente, lugar da casa

Ardo ao fim do dia - ela a água. A que nos prende à
Fonte – a água em que todos têm fome. Quando te
Dou a rosa – a paisagem seca

Ninguém já fala dela, hoje sei que sou água no que
Escrevo – crash – procuro as cabras e descubro os
Regos da água. Maldita seja a casa quando recebe a
Tempestade e não voa logo. Beijo-te tenho essa sensação
Recebe a minha boca. Assim doce a pedra da mesa fica
Solta.

José Gil

segunda-feira, 19 de janeiro de 2009

Crash 23




(escultura de juan muñoz, "many times", 1999)


“O espaço humano começa com
o pensamento dogmático,
que é a religião e termina
no pensamento completamente livre ,
que é a arte”

(Leonardo Coimbra)



Restos faunísticos onde se reúnem os vestigios das ânforas
Tu vais jogar comigo, tu vais aprender o ciclo do fruto
Oh! pai que me ensina tudo, agora até o céu para eu aprender
a escrever, nuvem sim, nuvem não, estrela sim, estrela sim,
Quem é o meu próximo, nos pavimentos de Alcáçovas nas
ruínas onde se desenvolve o gemido, grita no cárcere, é burlesco
nos relógios da história como o resto do mundo, o qual morreu
na zona paladina tiraram-lhe os bandidos da serra morena
na época do ferro islâmico na paisagem revelada num silêncio
de pedra nas festas da cidade – eis o lugar, o centro do verão

o teu rosto faz-se na palma da minha mão como o ângulo da
felicidade onde destaco o interior aberto no núcleo museológico
do eu convexo e jovem, pedra harmónica do mestre como outro
na sala da cisterna, na sala das colunas na tua predisposição inócua
através da luz num processo iniciático de apaixonadamente dito

José Gil

sábado, 17 de janeiro de 2009

Crash 22



(quadro de walter dahn, "untitled", 2006)


anoitece porque o sol se perde no nevoeiro
tempo litúrgico de quem avança na palavra
alma leve no espelho ao vento tenho a pedra
fina do teu cabelo, a festa rápida do teu sinal
rede do texto em que afirmo o som das palavras
depois ficarei mudo umas horas, quantas linhas
procurar os símbolos do tempo, ainda é a face da
tarde que procura a mão, levado, tupa que tupa
no Convento da Ara Coeli, todos ficam ao sol

passemos à outra margem

José Gil

sexta-feira, 16 de janeiro de 2009

Crash 21



(quadro de john constable, "the traveller", s/d)


Vibra víbora terrestre debaixo da minha face
não retive os meus lábios; voei, voo, pelos ares

Nada ocultei dentro do meu coração, bato a pedra
a tua justiça juro-lhe que sou do lagar de um quadro
pintei então os teus lábios na flor dos meus olhos azuis
acena-lhe a contingência, não sei já o que isso é, vou
fazer-lhe um dedo de justiça para que não venha moer-me
junto das azeitonas verdes se alguém vem que Me siga
dou-Te graças – um país de coxas vermelhas entre as passas

víbora que atravessas o texto, textura de sangue e o verbo
do cérebro inteiro – desgraça-me na mão limpa da manhã

José Gil

Crash 20



(quadro de armand guillaumin, "madame guillaumin et son fils andré", 1899)


Fui levado para um lagar de flores
estavas lá negra e bela no meio das
rosas brancas no meio do dia resta
ainda a auréola, um lugar de inveja

Qual Santo é maior que os lugares
do azeite nas flores de azeitona

Mostra-nos a casa da saliência um lugar
ímpar onde o rosto se alimente, bebe-me
no horizonte das carícias esse lugar
da tua pedra, da minha pedra o silêncio
frio da vida, um sol súbito, chamam para a
missa até onde deves chegar, esflorando-me
na doce lua, não quero mais viver no
lago – já não dou braçadas angélicas
dir-me-ás que tratando-se de Santos
ando na porca da morte a fazer de anjo bom

José Gil

diz o povo que o outono é, para nós: para o xavier zarco e o josé félix



(quadro de armand guillaumin, "le roche de l'eco, creuse", 1895)


(para o xavier zarco e o josé félix)

cresce do outono o inverno
o principio da surdez das
árvores doces e claras- roda
as sementes, voltam exactamente
ao seu umbigo, um dia falaremos
do lagar e do vinho, da broa das
letras sobre o regaço

José Gil

Crash 19



(quadro de armand guillaumin, "agay, la baie par temps de mistral", circa 1895)


“Há sempre um momento na infância
Em que se abre a porta
Que deixa entrar o futuro”

Grahaam Greene,
In O Poder e a Glória


“da migração dos pássaros
falaremos devagar
noutra ocasião”

Eugénio de Andrade [1973:56]



rebento o vegetal saudável da cabeça
o ombro largo do espírito solto
mais ninguém me vê onde falo
devagar, o espírito vago do mundo
bolhas que abrem as portas verdes
no burburinho do bar, seremos muitos

toda a terra rebenta no osso duro da
montanha onde a neve escapa e o sol
brilha – há casas abertas nas árvores do
sossego, falas-me de futuro, serei eu
o barco – rebento o silêncio ao grito
pouco vou cantar na estrada como o
sol que vigia as marés. Que saberemos?

O vegetal saudável conhece o terreno
As palavras são poucas e douradas

Os pássaros invadem as terras e os
territórios surdos das cidades

José Gil

quinta-feira, 15 de janeiro de 2009

Crash 18



(trabalho de ed ruscha, "stains, hollywood, heavy industry publications", 1969)


dai-me o mar, a fonte onde ninguém fala dela
uma espada de pedra, um rio, as asas da águia
dentro da caixa amarela do coração – olha a
bolha clara da claridade, oceânica, como o vento
leste, onde a pedra toca o luar de sangue seco
o caminho, com ele beberei a ferida, dói, chega o amor
o claro do dia por ninguém saberei ainda hoje unir
o manto do céu aos teus seios negros dos oceanos

lá no músculo toca-te a harpa do sol, doce e azul
crash, uma descoberta muito nova onde a lua fere
as estrelas e os teus limbos têm rios e mares no denso
nevoeiro – que a matéria dobre o espaço e o corpo
em dois – segura o coração no lugar da árvore
o texto – à tua porta do meu amor onde as moças
correm entre as saias e o sol duro da cal na pedra

José Gil

Crash 17



(pintura de francis picabia, "geai bleu", 1948)


Corpo a corpo, abre o vento e o norte, é dia
frio, morte,contempla a mais vasta via láctea,
em volta do seu eixo. fiz-me à estrada,
marca de água, ela assim me pegou só
o amor me faz andar, na sua flor de mel,
no seu paradoxo a tua mão respira
quase todo o texto corpo. estou a correr
por rumores o vasto céu em que me entrego,
com relógios solares, seguindo o morango
da estrela da noite celeste na vertigem
dos dias um gestus luminatus
neste dia, nesta noite, o feiticeiro
logra o sortilégio no almofariz
é o orgulho no lugar da casa ampla
roda a via láctea no teu umbigo

José Gil

quarta-feira, 14 de janeiro de 2009

Crash 16: Digesis (1)



(quadro de marc chagall, "fruit bowl", 1910-1914"


vem amor com o calor, onde chove e chove
se a poesia pode estilhaçar objectos sagrados
crash – a minha face apodrece em rachaduras
de tinta e verniz ressacados

a boca abre-se acima do queixo em que os lábios
carnudos formam uma moldura
o globo ocular não muito fundo e em forma côncava.

sobre um fundo de cor uniforme e o rosa e a rosa do rosto
sofiatelly de mussarela nos teus quadris e presunto ao molho
anjos à bolonhesa, arroz branco, salada mista (alface e rúcula)
com tomates secos ao azeite, sobre coxas de frango
recheadas, onde o prazer de jasmim é hiperactivo
a felicidade é o cristal da língua carnuda o céu inteiro

"os anjos que conheço são de ervas e de silêncio, nalgum jardim de tarde.
mas quais os mais ardentes?"(2)

à voz de um grilo as harmonias dilaceram-se no Mar

José Gil



(1) contrário de mimesis
(2) António Ramos Rosa

Crash 15



(quadro de claude monet, "houses of parliament", 1900)


“Ser ou não ser, eis a questão: será mais nobre
Em nosso espírito sofrer pedras e setas”

Shakespeare

Esta luz súbita
na última abobada
ouve-se o coro a cantar

as aves nos ninhos

abre a pedra telúrica,
escultor e cinzelador

abre a pedra telúrica,
ancestral a obsessão de
rasgar o tempo e o espaço
onde nasces, texto e
verbo, pareceu-me reconhecer
a voz, a voz única
e húmida como o sonho,
grava cinzelador a grande
risota dos espertos, medonha
traição da planície no
vale, eu sou o fugitivo

José Gil

Crash 14



(pintura de joseph beuys, "untitled (blackboard)", 1973)


Creio que todas as éticas se conciliam
Cerradamente, abraço as árvores do
Sol. Estou pronto na boca do poema por
Mera abstracção. Que jorra esta lua? Responde
ao que quer que seja na folha da esperança
onde nada perturba o coração – sou confessor
há mais de meio século. Talvez hesite ainda.
Entrega-se ao jogo da luz e da sombra, a alma
Ao cimo da página – necessária ao frio a casa
E todavia fria e solidária neste instante
Choro escrevo, avanço sem negar a face e a fome
O quase é ainda a bandeira de toda a terra

José Gil

Breve Comentário sobre Fractura Possível de José Gil: Cissa de Oliveira




O poeta tem fome. Fome de poesia. Assim o diz em "Cidade 103" quando escreve: "caminho com ele (poema) e ardo de fome calcando a relva e o basalto das mãos de pedra". O autor , ao tratar a poesia enquanto alimento - certamente para a alma -, diz: "a nossa própria cidade não suporta o bacalhau seco ao sol" .



Há na poesia de José Gil qualquer coisa que não deve ser quebrada, talvez nem pela interpretação do leitor. Gil há que ser lido, preferencialmente, com a poesia das sensações. A própria diagramação de alguns poemas aponta para este fato:

"os meus versos faltam-me os versos

que partem



e Tenho fome

Tenho fome"



Às vezes mais crítico e direto, como em "Memorial do Iraque": "era uma vez um país/ bem regado de sangue,/ fiquemos enterrados/ da cabeça aos pés/ pela nossa cobardia " noutras, com artimanhas de poeta desafiador "...só acredito num Deus que dança / e sabe dançar e encanta numa / pista de gelo ou alcatrão" ... "acredito num Deus infinito/ numa casa antiga, comigo/ e contigo". Além disto, com José Gil vamos descobrindo que a poesia embora doa, e dói porque é vida, é essencial como "a luz que esconde a escuridão (in: "Poema II").



Enquanto leitores devemos nos permitir à liberdade, e ao universo que a poesia de Gil vai descortinando. Assim, libertos para a leitura – e para a própria poesia - podemos ser tal qual ele cita em "As crianças": "as crianças irrealizam a poesia", porque em Fractura Possível a poesia é, essencialmente para ser sentida. Mas se sentida enquanto alimento, poderia também ser comida? Em consonância com Natália Correia, em "A Defesa do Poeta", "ó subalimentados do sonho, a poesia é para comer", sim.



Fractura Possível é livro denso, e concentrada é a poesia de Gil.



É para ser lido devagar. Relido. Portanto estas, apenas algumas breves impressões que, nem de longe, contemplam a grandeza dos escritos do poeta.



Cissa de Oliveira

Fractura Possível - José Gil
Estúdios Edium Editores

Porto – 2008

sexta-feira, 9 de janeiro de 2009

Crash 12



(fotografia de andrea robbins & max becher, "global village: two beds with gray carpet", 2004)


Entre o poço e a parede, entre a cal da pedra para lá do oceano
és pastor andas numerosas léguas
com o teu olho botânico, só caminhas nos azulejos do teu corpo hispano ou árabe.
Primitivo, sangra

afro - americano de pernas curtas e pastor, mendanha-te quebrando o silêncio
na face dos teus seios nas léguas distantes e amargures, não chores
anda, grava a esmalte os teus passos na terra doce do chão como o reino
dos insectos nas tuas pernas abertas.

o percurso é incerto no cristal da dor onde já nem a sentes

vejo surgir uma numerosa multidão

tenho fome!

José Gil

Crash 11



(pintura de henri manguin, "le divan bleu (jeanne)", 1906-07)


que maldade infernal me toca hoje
na branca pálpebra do sopro, ar vivo
a ilharga a roçar a ilharga, maravilhado
deixo a galeria – acordei ao reboar da neve
“os que viajam lêem só uma pagina”(1) bravo
à pedra e à carne, no futuro não sabemos o
que vai acontecer a uma só luz, de que terra
vem, quebra o voto, moça baila no meu terraço

descrevo a palavra à fonte seca,ao gestus
abro-te os braços mar el hija de dios trincadeira

de que continente vem ela? De que fogo?

José Gil

(1) Paulo Barbosa

quarta-feira, 7 de janeiro de 2009

Crash 10



(fotografia de sharon core, "around the cake", s/d)


alegrai-vos ainda há mortos, as casas voam
pelas janelas da alma, voam para dentro e para
fora das portas ásperas dentro destes dias de
cinema e carne e gelatina branca e natas da
paciência - não tomes o primeiro lugar onde os
bolos de chantilly vendem as estações mornas
espero-as na alegria simples do crash tão perto


o poema reúne todos os povos o mesmo pó o
mesmo sangue diferentes palavras à superfície

planta comigo um jardim a Oriente, diz-me
o coração, procura a minha face

José Gil

Crash 9



(fotografia de bruce nauman, "hands only (infrared outtakes series)", 2006)


procurais-me onde comestes as cerejas, abri a vossa
mão ao rés do sol já escondido na lua, ser todo vivo

avisai-me onde fica a casa onde o implacável come e
bebe, dos tímidos caminhantes da faixa perdida. o tempo
não existe, para quem não segura nos ombros todo o poema
todo aquele que é humilde num pó que ganhou e o ventre
sabe. o que fazes aos meus irmãos fazes a mim, são nove ou cem
para o corpo inteiro, porque me amas em ciladas? no recato da
intimidade, no centro e na periferia, deita-te no soalho limpo
para te amar a língua, a língua adere as cerejas e às ancas
uma madeira de barco com o sangue a bater no colo

beijo-te ainda onde ganhas a inquietação, o sol bate, toca-se

José Gil

segunda-feira, 5 de janeiro de 2009

Crash 8: Chá de Melissa



(pintura de diane fraser, "tea with lemon", s/d)


abato a casa elevada e elevo a casa abatida, aqui
se quebrará a folha da verdade, o orgulho das ondas
o sim e o talvez, subo ao mais alto a que pode subir
um homem e vejo o crash e bebo chá de melissa

foi um paraíso, de repente tudo caiu, o pensamento
dos poetas sente os corações vazios, dos mortais são
inseguros e os nossos conventos conceptuais frágeis

eu sou a porta, tentaram derrubar-me mas o poema
amparou-me

abro a cura dos sábios, estou pronto para responder
sobre o compromisso da esperança, há um futuro

em frente dos homens representarei a vida e a morte

talvez hesite – corro na linha da alegria, vamos.

José Gil

domingo, 4 de janeiro de 2009

Crash 7: Beijo Único, Todo



(instalação de sylvie fleury, "untitled (ô)", 2008)


pode ser feito por duas dez ou cem pessoas de cada vez
construindo mundos virtuais interactivos, pode ser
semente, crash, arrastar e largar a língua, desfrutar
compacto, volumoso mastro, pode abrir as portas de som
e de luz elemento prenhe – nas sombras que se lêem -
um diálogo assombroso, pode a faúlha tocar o mamilo
amar o mar, o sabor a pão, o beijo, o turbilhão, será
que te mereci o beijo rápido, os beijos ainda não dados
são cordas, sorvos vibram sempre entre mim e ti como
o músculo na coragem da intimidade pontual a cada braçada
na tua anca nua, segura-me as mãos, o corpo limpo da pedra
na videira, na rede da vinha, segura-me no turbilhão de te
ter real e toda, eu sou de madeira e choro, o pó, vinho
contido no teu gargalo como as minhas guelras vivas de
te cantar a cantada – o fado – bebo o amor pelos teus
ombros, entrar no fundo, abre o cimo, a superfície com
textura de cabelo e papel e precipito sempre estas letras
longas, grossas, quentes, verticais nas linhas do vento,
assombroso o corpo dilata por ti no meu pensar seco, já.

José Gil

sábado, 3 de janeiro de 2009

Crash 6: Sevilha



(escultura de sylvie fleury, "pink popcorn", 2008)


Vem do lábio todas as infinitas palavras, as
laranjas, as laranjas de Dezembro, as laranjeiras
em que tudo se perde no aroma das Praças de Sevilha
como um lugarejo de tapas.

Vem do lábio e chega e do lábio parte branda como
as faúlhas no caminho das grandes avenidas. Tudo rebenta
na tua frente, frente aos teus seios em cone de pêra.

Vem do lábio onde a fome do vidro a fome do espelho
espera o teu cabelo crespo, junto à fonte, a paixão é
o grande lago, é claro que todos têm razão, eu
estava a exercer pressão sobre as palavras e as sílabas

a página actual tem a madeira leve onde se escreve crash
com o teu perfume de vento sobre e por dentro das laranjeiras

escrever é uma simplicidade como comer uma laranja
nuvens possíveis no regresso a Lisboa, entre a nuvem e
o cinto da superfície, a textura da casca e suas linhas de vento

caminho errante, o sono não reunido num só nó.

jorge vicente

sexta-feira, 2 de janeiro de 2009

Crash 5: arte xáveda



(pintura de richard briggs, "bliss", s/d)


(ao constantino)

As ondas, as ondas, as ondas por dentro do sangue
o azul e branco bem longe do areal, deixo-te este
sol quente nas esplanadas, a areia fina e o barco

o Mar navega com os bois, a arte xáveda, o ilustre senão
a terra inteira, o erro branco, as ondas na
foz do Lis onde nasce o Pedrógão

Poderia ainda fazer um castelo com os teus seios
os mamilos das aves marinhas e dormir lento no
teu colo, saberemos um dia as ervas no doce chá.

José Gil

Praia da Vieira de Leiria 31 de Dezembro de 2008

Crash 4



(são pedro de muel)

Procuro a natureza do acaso as suas flutuações temporárias
acordando com o teu sol no meu rosto onde o Mar entra

a terra é espessa onde dói a rocha da saudade do corpo
amado, abraça amor a rude raiva do repente, a torneada
torneira do tormento no tornozelo que beijo.

Quero um barco! o único barco “Felicidade no Amor”, um
remo à frente e a tua vela, quero o saiote que faz o navio
andar com o mastro ao alto. Quero as saias das ondas
longínquas já brancas batidas depois nas areias do regresso
batendo forte o teu crash onde procuro a tua voz do acaso

falaremos depois do tsunami onde há calor neste Inverno

há asas brancas de metáforas libertadas
há asas brancas de orações libertinas

voo ainda como a águia sem dar lugar ás gaivotas

a minha alma é de paquete rodas no baile da corte
a bombordo a chegar à praia todo o pranto saberei
com o Mar como é Mar da minha vida


Praia de S.Pedro de Moel 30 de Dezembro 2008

José Gil

Crash 3: Ruína



(quadro de mychael barratt, "the dancers", s/d)

(ao Constantino e ao Jorge na ilha paradisíaca)

Escrevo-te a filigrana o seio escuro na camisa vermelha, aberta, como a lua a descer lenta na Parreira de Leiria, no mamilo largo dói a distância da mão não segurando a outra mão nem o lápis dos teus olhos. Como escrever-te. Ganham as palavras voz, na verdade essa é a loucura de um Deus livre e águia.

Escrevo-te o que falo no microfone, rápido, no amor quotidiano, só há pressa. Oiço a tua voz no ouvido que é nesse momento todo o corpo em arrepio. Mar, mar imenso, mar
infinito e se digo só filigrana, a luz faz-se luz nos dedos longos e fortes, revoltados com o telefone nos punhos e no pescoço auricular sensível no seu imenso peso, a voz então salta e pula na avenida de S. Pedro de Moel. Fica palavra selada no silêncio do coração e do seio esquerdo na penumbra do teu nome na parede.

Escrevo-te, coração independente nas coxas como o incêndio de uma loba.

Eu não sou exemplo para ninguém, já deixei de pensar, de dizer, de discutir.

Fechei a boca apenas para um beijo que murmura entre a língua e os teus seios e os dedos. Dói muito o oceano, quase choro, “esta estranha forma” de amar sinto a pulsação.

Nos pés onde toco e acaricio as três arvores do chá. A privação enfurece, sem “ telhado entre ruínas”, crash.

José Gil

Crash 2



(fotografia de gerard uferas, "orphée et euridice de pina bausch, ballet de l'opéra national de paris", s/d)


Procuro a natureza do acaso, o seu íntimo despido
como o cavalo aberto nas suas flutuações temporárias
sob as palavras, as tendências da arte em flor
onde se explica o arapaho(1), a representação
pictórica. Entre dois toques na bola de ping-pong,
a realidade é absurda, obscura, voam no crash as
novas cadeiras na biblioteca suspensa de cerejas,
a estilista corre nua de um lado ao outro do gel
perde-se no vestido longo e encarnado, saltam
ainda os sapatos e a flor de lis com a sua brisa

no palco Pina Bausch com seus braços enlouquecidos

o velho bailarino não cai nem sai, corre

acordando com a luz toda no rosto, cal

procura ainda por dentro do palco dos dias a folha
de chá desta alegria, é sábado, tu sabes

José Gil

(1) Arte dos Arapahos

Crash 1



(quadro de norman ackroyd, "brancaster roads", s/d)


dei à obra da casa um pouco de mim
a reviravolta do coração dos quartos
tudo começa na cama cega dos animais
distintos,

dei um beijo de sol a cada parede em cinzas
onde gelam as pilhas de livros e se escreve
o amor que vai chegar no verão

dei em mim um descuido não saberei mais
nada antes do estio apenas os móveis afastados
da solidão azul e branca

dei-me amanhã a crise dos que sabem e dos
que choram, as cadeiras de Maciel no ar em
carrocel, os líquidos das velas entre janelas

dei a nova prece a proximidade do eixo do mar
como o frio de Dezembro na Estremadura
S. Martinho do Porto e o sol verde nas ondas.

dei-me o salto de uma exposição para a casa
serei apenas o burro o animal inteligente que
vive comigo, bravo nos seus passos redondos
e obedientes com a sombra e a luz

dei-me a lua dos teus braços negros e brilhantes.
Chegamos á estação de Leiria, o peso das malas
novamente, livros e livros , só nos resta a praia

dei-me a saudade da areia – os olhos ficaram brancos -
o olhar ainda no branco movimento da espuma dos dias
traz ovos, colheres, ficou tudo branco à minha volta
crash só o nevoeiro é negro nas ciladas
como voltar atrás.

dei-me o conhecimento, o mapa apenas vos dá
caminhos abstractos, canta comigo junto á lareira
o trem chegou a fronteira sensível do manual escolar

dei-me um lírio branco para passar nos olhos
longe vou dormir e voar sobre o mar aflito

José Gil

Curto 31



(quadro de paula rego, "moon eggs", s/d)


A almas das rugas percorre Paula Rego onde o corpo jovem corre da gravidez e negro o corpo foge do cão negro como em velt literature, a parte onde te escondes a escrever – abandono e escrevo para adormecer entre duas casas de chuva, é sábado toco-te a pele da casa, a pele do regaço. Regresso onde a luz te faz vibrar a chama, atravessas agora a penumbra dos anos 80, no outro lado o edredão branco e o teu corpo negro, brilhante crespo cabelinho onde és a rua da alegria de cidades longínquas, regressa de moto ou de barco, rema o teu corpo com suaves carícias de chocolate quente, cresce para nós na luz branca da tardinha. O escrito comprime o nosso espaço. vamos nus de mota, amor, alternativa a marginal nocturna de Chopin, cão vadio, toca-me com os mamilos ao vento, prolonga-nos, vibro onde falta a luz e a palavra em fogo caminha na tua chama com o comboio de crisântemos e jasmins. escrevo na maior desordem. as ilusões são tão impossíveis como imorais, mesmo quando corro atrás, nas árvores de copa nocturna, allegro, delas cegamente no paredão junto à areia de madrugada, toca-me os seios nas costas e perco a pele, dispo-a e fico com os órgãos todos à luz da luz, vibro o cio do corpo aberto ao creme de chocolate no uivo e na casa. Estou rendido á terra que sabe que eu estou perdido nesta rara, raiva, ruidosa. A tinta do meu computador és tu num incerto movimento são os cristais do ciúme. Quero a terra nova, a sombra fria, mordeu o meu vermelho coração, o drácula espera-me em Sibius na Roménia das minhas ilusões arquitectónicas e os lábios maiores e as línguas sem deixares por isso de ser Deus. Segura-te à estaca do coração negro de uma caixa de fósforos móvel espalhada ao vento como as tuas ancas sobre pequenos pêlos de gente singular. Os lábios acendem novamente o mel.

Estou só no mundo, como sair daqui para ali. tudo se explica, vês aqui a grande máquina de amar. Este poema cresce-me nos cotovelos. Nunca choro, a sombra fica no lugar dos vivos inocentes, não há sodomia sem ser no poder, não há poder nenhum se ninguém morre, apenas um labirinto sensível de uma gelatina com pontos ásperos, apenas um labirinto das portas de sol. Amo-te na íntima agonia plenamente perdido.

Beijo os cones e lanças as garras aos joelhos. Eu contemplo-te e beijo os pés e falo-te.

Ouves ainda o murmúrio na penumbra, sentes os meus dois dedos bem dentro e lentos, revelo-te que vou escrevendo outro poema elo de uma cadeia de vários poemas curtos no seu toque, no seu tempo, escrevo directamente num espasmo curto, num sopro contínuo. Tudo isto é simples como a paixão. Curtos. Sinto na língua os teus crespos no lugar dos fios de ouro, sou o teu palco ou já não fosse o meu amor, a pele, o pêlo, o sangue, o músculo. Abro o caderno dos apontamentos e o computador. A minha caligrafia é infantil como o teu sorriso adulto e maduro. Sorri outra vez. os acasos só são por vezes acasos. Ilustra-me os dedos ao abandono, estar aqui ou não estar. Abre a porta, e digo-te hoje não há sorvetes amor só cinzas dos vivos.

José Gil