sexta-feira, 27 de agosto de 2010

o homem da moto



(desenho de ross bleckner, "FSD", 2004)


correr, correr, correr contra a parede
na parede do país pela queda lúcida
os anjos sem voz, a música do ar
quando na estrada agarrei-me à vida
tanta árvore, tanta vida quando a
luz acontece o silêncio dói no suplicio
um saleiro transparente, salsa, coentros
um dia feliz é o tempo das vacas
a ilusão de que não somos animais
a minha vida nasceu para plantar
árvores e cuidar dos grandes cavalos
da terra e das conversas saímos
do céu alados – uma estrada grande
entre os cheiros da cozinha, nasci
no fojo sei, junto ao mar às ondas
os peixes cegos na pontualidade
da série ilimitada eu sou a casa
grande a pele de cor violeta verão


José Gil

quarta-feira, 25 de agosto de 2010

corpo



(fotografia de tom baril, "brugmansia, 10 flowers portfolio", 1998)


1.

nuvens em castelo na lua do
lado do sol no cimo do monte
chegas devagar, vens nos seios
claros e negros do meu olhar
e memória – os arqueólogos
como uma sereia dos montes
alentejanos – musa que chegas
ao algarve com a voz inconfundível
da paz, apenas vejo o mar, as ondas
serenas quase mar feito, amo-te e
espero a negrito do teu acompanhamento

2.

os bons segredos das tuas ancas
devo partir e ficar longe
a arqueologia preventiva
amor executado no principio
condicionado às cerejas cristalinas


José Gil

sexta-feira, 20 de agosto de 2010

nova aliança



(fotografia de henri cartier-bresson,"brie", 1968)


O futuro da relva já sinto a percorrer na coerência
Sinto-o a percorrer na coerência global
Uma mão dupla inteira
Na árvore negra da verdade
Física e metafísica tu que apelas todos os dias
Só te vou conhecer retrospectivamente
Na coerência global
Há ainda uma síntese pessoal embebida na poesia
Já não escrevo. Apenas me deslumbro da caneta
Sobre a folha de zinco ao sol
Estamos na “Nova Aliança”(1)
A relva a fundo nos lábios
A flor do taoismo da física
Sei que me vês mesmo com distância
Que chora da física contemporânea
Do misticismo oriental
Amanhã é sempre tarde de mais

José Gil

(1) Ilya Prigogine


José Gil

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

beleza digital 3D



(pintura de dan mcdermott, "maralyn", 2006)


Aos perfumadores de cristal
Ao José Félix e aos cinco poetas

O centro é o próprio verbo do
Ovo escalfado de madrugada com
Chocolate e menta e perfumes de
Cristal depois as escadas em caracol
Prolífico, a misteriosa beleza digital
Ela prepara-se para ti ou o trabalho

Avança muito cedo pelas ruas
Vai abrir a bilheteira do cinema
Para as crianças, chegam os rebuçados
Ela rodas as chaves, as salas abrem-se
Depois prepara a primeira máquina
De pipocas, o filme é um pouco
Mais triste como a hortelã na relva

José Gil

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

cotejo do anjo



(pintura de michael argov, "young woman at the port", 1954/1955)


tenho que tocar-te toda no
cotejo dos anjos, outra
floresta nua
ardendo como
outrora nas cordilheiras
de Agosto em fogo

seta despida na penumbra

deixo-te três espelhos para
te conheceres, toco
o do espírito como o
principal - aporia de mel
o poema da penúria
rotativa, na sua territorialidade
flexiva,vibra agora
o sono das pedras
e traz a erva para
o centro da cidade
eu sou o teu hálito
canta-me a tua
redonda mão


fica na janela
estamos sós
no bairro

José Gil

domingo, 15 de agosto de 2010

como posso dizer



(desenho de marc chagall, "mounting the ebony horse...", 1948)


trago dentro de mim
a bicicleta muito leve
uma cremalheira de pêssego
cremoso
roda dos pés ao cabelo
tem mais rodas que
tipos de pele
trago essa dificuldade
a pele é toda
diferente de todas as
pessoas
luz light e rasteira no ar
fresco na noite quente
cenoura, laranja, meloa

escrevo hoje dentro de
sal marinho, sinto-me
transparente e leve

todas as cores dos cantos
do poema

o escritório prepara-se
para mudar toda a sua
estrutura

sonho com um atelier no
13º andar ao pé do mar
não escreveria diferente
como posso dizer


José Gil

amor escalfado



(desenho de marc chagall, "bay of angels", 1967)


“Nesta lista - como num rio - correm as veias dos poetas, nas
pedras que rolam e rebolam.”

Abilio Pacheco



acordo no amor escalfado
um dia vai aquecer mesmo
cedo ora desliza para um
lado outro desliza para o outro
nesta praia branca e de brisa

estás bem colocada ao centro
da ribeira d’ água a fazer
de forma baixa a hotelã

o gelado de frambroesa
tem um pico da tua erva
como chegar à primavera
um pouco de torada
com doce de gila
à roda do mamilo

a violência do alecrim
e mangerona

José Gil

o fogo



(desenho de louise bourgeois, "anatomy (detail)", 1990)


a tua pele bebe o meu lábio
a língua fendida em duas
junto à fonte da ribeira, dói
crescer no olhar a pouca
distância da ilha do pessegueiro
no umbigo da uva e do fogo

há outro fogo em outro beijo
as palavras espalham-se por todos

temos esta terra. é nossa?
é vossa - correm cavalos rápidos
a arder de uma ponta para a outra

dá-me a mão, trinca ainda a língua
cheira a incenso, vamos abrir
mais um caminho, o fogo
paciência dentro da fruta

José Gil

domingo, 1 de agosto de 2010

as papoilas



(fotografia de george holz, "mother of all living, la primavera, mexico", 1996)


No muro rebolam bem as pedras
Viveria bem entre elas e as flores
Calmo uivo alto ao mundo que passa
No muro rebolam as pedras e o vermelho
Vivo entre elas e as papoilas como um santo
O mundo já está todo branco, procuro-te

Onde estás? Chegas-me com o teu sono e vibro

José Gil