terça-feira, 26 de maio de 2009

corpototal 15: frio solar



(pintura de erich heckel, "reclining woman", 1907)


“Dai-me uma folha viva de erva, uma mulher.
Seus ombros beijarei, a pedra pequena
do sorriso de um momento.»

Herberto Helder

trago o musgo por toda a avenida do teu corpo
mulher correndo com os lírios, correndo
toda a noite, viva, fresca, para lá do céu
na mudança clara dos animais abertos e lindos
na imitação da natureza, havemos de voltar
no frio solar, vamos no decurso da centúria
seguinte, traz a crista que eu coloco, quase vernácula

no eco da palavra sorgo no período condal por
dentro das iluminuras onde se espelha o dom,
no território e seus recantos em degraus de musgo
manchas românticas levadas pela noite enevoadas
da rede social dos ossos, das artroses entre as pernas
pelos arbustos carnudos dos membros, musa surda

José Gil

sexta-feira, 22 de maio de 2009

corpototal 14



(pintura de ralph e. cahoon, "two on a swing", s/d)


“é pelo tacto que a fonte do amor se abre”
Manuel de Barros


como a pedra da fonte, toco-te bem junto
à flor do umbigo onde cresce a madrugada
da febre, sem frio, o mundo todo na árvore
do tacto, como um veneno prende o homem
ao animal na outra folha da madrugada

corre pela praia junto ao mar, ela dança
na fonte da canção ela vive debruçada, avança

já há pouco espaço entre os seios e os cones
da fibra tónica dos mamilos, vamos como
a pedra na fonte toca e diz o verso mais claro
à flor da canela a manhã na janela da praia

o sol da rocha entre irmãos, a face fresca no
céu claro, a água sentada no estilhaço da fonte
agulha de tacto local mesmo no debruçar do corpo

digo o outro lado do oceano que não vês ou vês
o que o piano das mãos evoca a terra quente
entre a palavra e o corpo total e azul, a mulher
pérola negra, boca vermelha rosa na espera

as palavras secas saltam tão rápido, no total

José Gil

quinta-feira, 14 de maio de 2009

Mudam-se



(pintura de jim dine, "sharing the power", 2008)


ao Constantino

levanto-me devagar no lugar das
silvas onde nascem as novas palavras

gostaria de mudar o mundo levemente
porque gritei no lavabo da escada
o que é a memória sinto que não
sou eu, passo-me

mudam-se as casas erguidas nos punhos
a reforma agrária, os sem terra, como
falar deles no infinito desejo de ser
novamente eu, na pedra limpa no dia
de soltar as asas. A manhã traz as velas
o oceano é lindo, falas de distância e
eu choro entre dois mundos, que procurar
ainda nas pedras que não doa o virtual

José Gil

quarta-feira, 13 de maio de 2009

Leiria



(fotografia de rodney smith, "don jumping over haystack", 1999)


"O teatro é a vida. (...) não podemos dizer que não haja diferença entre a vida e o teatro. (...) vamos ao teatro para reencontrar a vida mas se não existe nenhuma diferença entre a vida fora do teatro e a vida dentro do teatro, nesse caso o teatro não tem nenhum significado. (...) Mas se aceitamos que no teatro a vida é mais visível, mais legível que no exterior, verificamos que é ao mesmo tempo a mesma coisa e uma coisa um tanto diferente."

Peter Brook



essa pequena chama
que se ilumina e transmite
a palavra

como um eixo curvo no centro
do espaço
a poesia é a vida

em intensidade
na folha da rua

José Gil

sexta-feira, 8 de maio de 2009

sobre herberto hélder e josé félix



(pintura de ronald brooks kitaj, "chimera", 1980-1981)


"mesmo sem gente nenhuma que te ouça,
poema intrínseco dito a português e dentes,
a sangue desmanchado,
com a estria lírica a fervilhar de riscas
rudes, frescas, roucas,
tu que como que iluminas pela boca fora" (1)

herberto hélder

“o sangue que me escorre da boca lassa
é uma frase que atravessa os lábios
como a águia de bonelli no voo picado sobre a presa.
coagula a palavra na voz surda, absurda
como a dor no baixo ventre ─ do parto”

José Félix




rasga o sangue que te prende e ninguém vê
ao lugar mais alto de Guernica de picasso
da terra presa ao cavalo do cavalo
preso à luz e de universal português
este canto ibérico na linguagem
sem desenho, na mão sem corpo
sobre a areia, escrevo os répteis
e eles avançam como ratos cegos
na rota luz do esburacado casaco em
que me venço e avanço de arrasto

duas negras alvas, ou uma apenas na
dolorosa distância dos continentes
contra o suspiro que engole a lágrima
contra a língua a fronte o pulsar do sangue

quem sou eu que não desisto na pobreza
extrema do cérebro que se abre sobre a
folha sem nada nem flor nem semente
no crânio dócil das bolas encarnadas para
um pé que ganha o gosto de andar e os
dedos que se prendem à perna para correr

adere o osso ao músculo são quatro ou cinco
cruzados entre os ligamentos do texto, cruzados
os ligamentos das letras às palavras, das palavras
ao oco cérebro, dos sentidos ao poema, é este
o reino dos ratos e das ratas debaixo das mesas
no murmúrio das portas fechadas, sou português de
gosto na muralha mais seca dos sobreiros por dentro
das frases, escrevo como quem cega, sem obstáculos
onde me veja e perto do ar sem respirar corro

trago o polvo debaixo dos braços, as ventosas
junto às costelas, e o poema solto bem preso
ao lugar do papel em toda a batalha da hortelã dos
macios mortos entre dentes, falem, gritem digam não

pousada a palavra é um pacto entre o poeta que vence
a rusga e foge com o carro branco da luz e se espelha
na arriba da praia contra o veneno da vida rasteira

salta herói de papel destes dias de festas no centro da
coluna, onde ninguém chega com as chagas do canto

vibra cão que mordes o cavalo que transporta corpo
morto dentro do bosque dos nervos acesos, berra camaleão
no bruto roçar dos carros e das carretas do rumor

viva a roda única do calendário dos meses, escrevo como quem
sopra o último sopro ibérico, da gala da pedra sem música

bate pedra na pedra do crânio pelo fogo
escreve ou risca português com hálito de casa
sedentário preguiçoso como a cobra

abre a terra onde avanço com o sangue entre os dedos


José Gil