quarta-feira, 20 de outubro de 2010

a multidão abstracta



(fotografia de bill brandt, "train leaving newcastle, 11/25", 1940"


“a multidão abstracta do significado”



um comboio é um comboio oculto
pode não ter significado para lá
da exclusividade de transportar
os teus cones negros e rosa

estranho é o que se passa no teu relógio
quando estás ao pé de mim, não é
uma coisa oculta mas tem o significado
da carne e do suor de dois corpos no
comboio vazio entre as praias do sado e barreiro

já de noite, olho-te e não vejo os teus olhos
caminho na cabeça dos pensadores e a coisa
fica assim resgatada nos mediadores entre
os nossos corpos e o oculto real dos campos
negros da noite no sensacionismo omisso
em cada escrito, todo o corpo tem várias
vozes como a noite ante a evolução íntima
o comboio tem vários comboios e corre
atrás de outros comboios e de si próprio
é uma linha e um horário, não quero pensar
mais nele, estou sentado no banco sete e vou
nele até entrar perto de Lisboa e da sua salça

José Gil

terça-feira, 19 de outubro de 2010

nozes



(mixed media by tom wesselmann, "study, two feet, cape cod", 1965)


Líquidos vazios na palavra
Mar solto e corpos lindos

Em meu corpo

Todo vazio correndo na estrada
Impossível dizer-te num poema

Encantas-me no teu

Impossível fogo claro das cordas
Do violino bem junto aos seios

Há chuva de leite

Que súbito pensamento me tortura
Alegria ou densos pressentimentos

Alto e magro caminho

Que vento nas cordas do meu sorriso
Violino retratado noite infinita como

Penso lento por pensar





Algodão do meu olhar mãe noite vou cantar
Suga por mim um pouco de sangue azul mate



Onde andará minha camarada só



José Gil

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

aparas



(pintura de marina karella, "i wish i had a river", 2009)


escrevo-te num lápis fino nº 2
negro na folha doce e branca
corre nela o barco de cacilhas
e as pequenas ondas do rio
obrigam-me a afiar o lápis
vibro o tempo inteiro que
te escrevo, nada passa
é o vazio, o doce supremo
gila na colher caneta de
aparo fino, desenho depois
o lado do coração, o canto
das flautas transversais é deus
onde o sangue se espalma contra
a farsa, nada mais faz o caricaturista
só tenho o bilhete, o papel e o lápis
atravesso o tejo para vir ao bairro
onde tudo se fuma e alimenta os
negócios da noite, amo-os os de
cor verde independentemente
do resto da noite, bebo aparas
de gin com a cachupa
e choro lentamente

lembro a adolescência
na rua dos caetanos

José Gil

quinta-feira, 7 de outubro de 2010

bicicleta



(fotografia de edward w. quigle, "bicyle study", 1935)

trago dentro de mim
a bicicleta muito leve
uma cralheira de pêssego
cremoso
roda dos pés ao cabelo
tem mais rodas que
tipos de pele
trago essa dificuldade
a pele é toda
diferente escrevo hoje dentro de
sal marinho, sinto-me
transparente e leve

toda a cor e tons dos cantos
do poema

o atelier prepara-se
para mudar toda a sua
estrutura

sonho com um atelier no
13º andar ao pé do mar
não escreveria diferente
como posso dizer


José Gil

suavizar com tacto



(fotografia de manuel alvarez bravo, "fruta prohibida", 1976)


no Porto, outrora era apenas o vinho incandescente
as uvas não falam, ninguém pode ensinar o sabor
delas, nem do hausto Deus, quando debruças o teu
peito sobre a canastra clara sou eu que espero, o
açúcar em ponto de sentimento, o desejo, o corpo
que defendo, dentro da palavra. Que amor ouvirá este
Outono, no tremer das pernas. eu amo tudo o que é vida
o aroma dos lábios na pele abafada à garra
do silêncio que a compromete. Melífluo beijo…
Baloiça o desejo na ilusão dos corpos deslumbrados à sua chama,
elevados à mente que os abraça.
O rio que passa e corre e traça a fé de um abraço,
A fé de um amasso…
quente, forte, seguro,
Suspiro aceso ao prólogo de nova viagem
a minha nudez no incêndio do
tacto, nas rampas da voragem as
ancas encontram-se tocam-se, trocam
pelas línguas, abrem o mel e o leite
os barcos e as mãos sobem as costas
até ao peito, passa-se a noite a acordar e
a dormir, as mãos procuram o primeiro
gemido, como um piano, como Chopin
o trabalho do corpo porque o amor chega
o meu amor está a chegar e tudo
realmente acontece, depois as canções dos
ritmos dos corpos no chão plano e na parede
devolve-nos à terra dos lençóis, ao brilho
de um café, a onda cheia com um pingo
na avenida da foz


José Gil

poesis



(fotografia de peter beard, "francis bacon", s/d)


(Poesis doctrinae tamquan sominium)

Francis Bacon

tenho o poder de despertar a vida
alma de criança da natureza, na
persuasão, adivinhação e profecia
quem conhece o teu corpo de flor
kalevala no jogo combinatório
sobre a “pedra de canto” sou o
imprudente competidor no
desafio de fanfarronada ou
a jactância da lua na noite
“antiquíssima e idêntica”
no meu ordálio de insónia
serei vates, o possuído
deitado na relva da lembrança
sha´ir(1) bebendo o hidromel para
ser o poeta vivo kvsair o mais sábio
mistagogo, kulredener(2), thrul (3)

tento o lugar do património
o jogo da poesia – palavra
tempestade de nomes vértice
profano de quem vive solto e branco
como só as veias em tronco onde se
vê a ave que ocupa a terra inteira
as harmonias de um punho fechado

lento como o sangue, uma teia de hortelã
no fundo do umbigo rosa e negro, o alho
do esquecimento latino tenho um poder

José Gil


(1)sabedor segundo os árabes antigos

(2) orador culto

(3)actor de drama sagrado

quarta-feira, 6 de outubro de 2010



(pintura de chris acheson, "vandolls", 2007)

a actriz avança no nevoeiro que se levanta
traz a sua luz de glória perde-se no “não
se paga. não se paga”, avança como um navio
no cais, grande e leve para navegar do guincho
ao ginjal. a actriz viaja no meu país de
remendos e de pedras, meu país sem água
e sem sede e sem fé – tudo dorme na flor
da inveja e do ciúme, o país não pode produzir
a beleza nem a sua dor fina. dobra irmão o bico
público, à claridade imunda dos parasitas
mediáticos da verdade absoluta. “deve ser assim”!
"assim não”. todos se sentam no seu banquinho de
excelências e vinho. meu país indeferido e infinito
que levanta a poeira para lá da língua de todo o
mundo. e nada. sintra é maravilhosa na primavera.
como o Algarve

a actriz morreu
no total desprezo ela ainda avança no palco dos
que ficam, pequenos navios ao largo do tejo
barcaças. se eles andam eu já vou neles
adeus amigos, pátria dos amigos, enfia-me
a faca pelas costas como uma ousadia contra o
esquecimento. avanço já nos ribeiros do meu amor
pequenino, vê como voo na pátria doente da erva
daninha e dos cigarros amarelos

a casa abandonada para novos esquecimentos

esqueço-me de mim no navio que deixa lisboa, a capital
o sol nasce ainda devagar chega a actriz do “não se pode
exterminá-lo” meu país ao pé do intermarché, os passeios
cheios de carros e de cegos. bonita é a fuzeta, partiu-se o
aduelo, a moldura da porta aberta.

não sou escravo do poema. trabalho - o há três anos
no dia em que sobra o pão a floresta da esteva
a flor da estepe, o teu figo, pela flor de cada
fruto meio fechado basta-me a flor do teu mamilo
adoro a minha pátria dos artistas doces e das
cobras – compõe casas simples e pequeninas
o milagre da pátria está para lá da alma certa
entra josé
sai josé
o tempo avança


José Gil

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

o teatro fechou



(fotografia de cornell capa, "marilyn monroe during the filming of the misfits" (1960)


bowling claro nas baixas
do tempo, interior, até
cortar as linhas das palavras,
o teatro é uma máquina do
controle o controle do controle
entre as rosas e os girassóis

o bowling é um espectáculo
frio –“ eu vou para a rua
mas tu pagas” diz o discípulo
ao professor – não há teatro
tão forte, destrói, o acontecer
violento como sedução,
aguardente de milho, um resquício
o funcionar holistico da hortelã
perdeste ainda no teu bowling

José Gil

aporia



(fotografia de thomas billhardt, "altenburg" (1964)

“descubramos os becos sem saída
Descubramos a nós mesmos
Reconheçamos as nossas próprias aporias
E sejamos dignos Apóricos !!!”

André Bonfim


Exsudavam na resina dos olhos
Quando por dentro chovia e o
Mundo nos roi em volta de
Um beijo – o mármore dos
Corpos – na aporia própria

Vibramos depois o outro
Silêncio da tua fuga – fico

Disto não haverá saída
Distorcendo palavras
Glossálias frescas logo
De madrugada com o chocolate
Quente e o comboio da linha do
Sado ainda madrugada

Alguns dormem outros vazios
De pensar em tudo o que os rodeia

José Gil