segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

abdicação



(pintura de gladys rockmore davis, "still life #2", circa 1950)


coloco os coentros ao sol como eu
nos bancos do jardim da praceta
antes de subir a escadaria de pedra

fugi dos carros para as cenouras e
os pepinos – estraga-me a auto-estrada
não é lenta como o amor, fico assim
com o meu sol o grito interior
e o grito exterior e a respiração do
pinheiro quente e do musgo ainda
perto "da lareira" por dentro da folha de papel

de mansinho digo dobra-te só este sol encanta
os peões como as palavras pequenas

José Gil

Sem Flores



(fotografia de lucien clergue, "nude #4", s/d)


as mãos não precisam de flores,
têm pétalas
dos dedos escorregadios
onde nasces,

seguro-te a
mão – traz muito pó das obras da rua
mesmo em
frente ao poema mas o calor das mãos
passa entre os dedos das janelas
com o pó da ama - olho a tristeza da sombra
e do
anoitecer, abraço-te com o último amargo doce

não
tenho estratégia o poema derrete este
chocolate nas tuas costas de
abraço, dobra não tenho plano, trago
o papel e rendo-me à flor
apenas um lírio vermelho e os dedos
e as ancas únicas como
a primeira vez na fatal linguagem do desejo,
são ambas no presente enterneço e sinto

José Gil

manhã cedo da alma



(desenho de will barnet, "the dream" (2002)


Dedicado a
“por vezes a lareira”

José Félix



Em Dezembro,”por vezes a lareira”
na manhã cedo
da alma inteira, o homem
no homem das emoções
profundas rente à parede
num desassossego de angústia

vago luar ainda nos sonhos
desta noite, entre a solidez
das cerejas destruíram a falta
de afecto como a tarde de
sol, batendo no outro sol do
desassossego do poema
no cuidado da limador que
comigo escreve sem metafísica
no interior da sombra dos teus
seios íntegros de Inverno
numa linguagem requintada de
tantos beijos, olho-te e
só vejo os seios da terra trabalhada
como o relógio do
descanso – vivo na realidade interior,
fascina-me a minha mão
a tua mão agora na rocha e na escarpa,

vamos subir

José Gil

quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

hortelã e mel



(desenho de alex katz, "ada with flowers", 1981)


Escrevo como quem atravessa
a pele das tuas asas
Um trabalho de hortelã e mel,
bate as tuas asas nas minhas
é Lisboa e
Sinto-a sagrada de luzes


Sonho-te noutro lugar em tudo
o que me ficou dela
O meu instinto, o meu exílio mais
nada posso dizer
Falta-me o cílio, a pedra dura


José Gil

segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

verão



(pintura de willem de kooning, "the kiss" (1925)

o verão que chegou é o teu corpo
a tua boca ferve, a tua alma
queima em pingos de suor
em plena época das castanhas.
a fervura da tua língua percorre
o teu corpo findo no meu corpo

procuro-te como a trovoada de
ontem, altas temperaturas no
corpo alagado em trinta minutos
hoje a alegria do sol quando vens na
estrada já me aquece os pés
como muita gente tenho os pés
frios todo o ano, cheiros e
caminhos a perder nas piruetas
do discurso do poeta, quem não gosta
do corpo da mulher crua e musical

José Gil

quarta-feira, 24 de novembro de 2010

montinhos



(fotografia de robert morris, "self-portrait", s/d)


A orquestra do Titanic toca durante o naufrágio
do prédio na dúvida soberana dos montinhos
nas ondas de gás – ela trinca a hortelã do Martini
à saída de cena morre-se sempre antes do tempo
activos sólidos ninguém julga as grandes notícias
são as maiores diz ela são as maiores as de iniciativa
própria blindada. Dá-me uma surpresa nas entrelinhas
um cabelinho com um sinal nos cones negros como
montinhos quando estás de frente, vamos em frente, sempre
para a frente do trânsito, das corujas, das girafas
quero nesta casa outra noite sem dia - o oceano todo em baile
os mamilos rosa em que eu
embarco sempre de novo
no rigor com o perfume
da época

o país despido junto ao corpo – há tempos de voar como falcão
vale mais uma ruptura a curto prazo, o vento rondou
em todos os jornais, um pacto de namoro
onde não há nada a clarificar
a possibilidade
do que vai à
pele

José Gil

a flor de jasmim



(fotografia de juliano santos)


Traz o triplo jasmim manga

O eterno bolbo das flores

De lírica, lírica rua onde

As mãos do mar branco

te aguardam para outro

rio, transporta a fortuna


José Gil



poema também publicado aqui

segunda-feira, 15 de novembro de 2010

sol



(escultura de aaron spangler, "untitled", 2005)


chapa a capa do sol
como a pedra a ferver
dentro das tuas costas
sou areia nobre
no passo que revela
há fronteiras abertas
sem conflito, e depois
sonhar, crenças e práticas
artes contemporâneas, na
transferência estética
a realidade paralela
no plano inclinado do
teu corpo no meu
uma matriz de árvore e
de homem

José Gil

corpo 314



(fotografia de antoine d'agata, "france", 2002)


contra a pedra quente
o lugar do corpo junto
ao rio no meio da floresta
é aí que procuro o mel

no campo tudo faço
para te encontrar flor
silvestre e difícil
como quem olha uma ave

escrevo assim o
primeiro tronco
entre os cones da lua

José Gil

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

sakineh




uma pedra, outra pedra, ela vai ser
apedrejada noutro dia de luz, uma
pedra ainda na pedra grande da beleza
a pedra fina e iluminada de dizer não

como se compreenderá por lapso
escrevi a história da beleza

José Gil

terça-feira, 2 de novembro de 2010

falamos de casas



(fotografia de laure albin-guillot, "nu", 1927)


os corpos habitam-se sem a ideia
do corpo da casa – o corpo tem cantos e
recantos, esquinas e curvas junto á fonte
e ás portas – os lugares silenciosos e quentes
são as caves com os animais

nós dormimos por cima com todo o bom calor

até ao final da noite chove ,aqui nada só o som
belo, onde as flores saltam e as flores voltam
aos pés do poema nas casas de palha

volvemos o dia num bom tom de sol tardio

José Gil

o verão que chegou é o teu corpo



(fotografia de ruth bernhard, "knees and arm", 1976)


o verão que chegou é o teu corpo
a tua boca ferve, a tua alma
queima em pingos de suor
em plena época das castanhas.
a fervura da tua língua percorre
o teu corpo findo no meu corpo

procuro-te como a trovoada de
ontem, altas temperaturas no
corpo alagado em trinta minutos
hoje a alegria do sol quando vens na
estrada já me aquece os pés
como muita gente tenho os pés
frios todo o ano, cheiros e
caminhos a perder nas piruetas
do discurso do poeta, quem não gosta
do corpo da mulher crua e musical

José Gil

quarta-feira, 20 de outubro de 2010

a multidão abstracta



(fotografia de bill brandt, "train leaving newcastle, 11/25", 1940"


“a multidão abstracta do significado”



um comboio é um comboio oculto
pode não ter significado para lá
da exclusividade de transportar
os teus cones negros e rosa

estranho é o que se passa no teu relógio
quando estás ao pé de mim, não é
uma coisa oculta mas tem o significado
da carne e do suor de dois corpos no
comboio vazio entre as praias do sado e barreiro

já de noite, olho-te e não vejo os teus olhos
caminho na cabeça dos pensadores e a coisa
fica assim resgatada nos mediadores entre
os nossos corpos e o oculto real dos campos
negros da noite no sensacionismo omisso
em cada escrito, todo o corpo tem várias
vozes como a noite ante a evolução íntima
o comboio tem vários comboios e corre
atrás de outros comboios e de si próprio
é uma linha e um horário, não quero pensar
mais nele, estou sentado no banco sete e vou
nele até entrar perto de Lisboa e da sua salça

José Gil

terça-feira, 19 de outubro de 2010

nozes



(mixed media by tom wesselmann, "study, two feet, cape cod", 1965)


Líquidos vazios na palavra
Mar solto e corpos lindos

Em meu corpo

Todo vazio correndo na estrada
Impossível dizer-te num poema

Encantas-me no teu

Impossível fogo claro das cordas
Do violino bem junto aos seios

Há chuva de leite

Que súbito pensamento me tortura
Alegria ou densos pressentimentos

Alto e magro caminho

Que vento nas cordas do meu sorriso
Violino retratado noite infinita como

Penso lento por pensar





Algodão do meu olhar mãe noite vou cantar
Suga por mim um pouco de sangue azul mate



Onde andará minha camarada só



José Gil

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

aparas



(pintura de marina karella, "i wish i had a river", 2009)


escrevo-te num lápis fino nº 2
negro na folha doce e branca
corre nela o barco de cacilhas
e as pequenas ondas do rio
obrigam-me a afiar o lápis
vibro o tempo inteiro que
te escrevo, nada passa
é o vazio, o doce supremo
gila na colher caneta de
aparo fino, desenho depois
o lado do coração, o canto
das flautas transversais é deus
onde o sangue se espalma contra
a farsa, nada mais faz o caricaturista
só tenho o bilhete, o papel e o lápis
atravesso o tejo para vir ao bairro
onde tudo se fuma e alimenta os
negócios da noite, amo-os os de
cor verde independentemente
do resto da noite, bebo aparas
de gin com a cachupa
e choro lentamente

lembro a adolescência
na rua dos caetanos

José Gil

quinta-feira, 7 de outubro de 2010

bicicleta



(fotografia de edward w. quigle, "bicyle study", 1935)

trago dentro de mim
a bicicleta muito leve
uma cralheira de pêssego
cremoso
roda dos pés ao cabelo
tem mais rodas que
tipos de pele
trago essa dificuldade
a pele é toda
diferente escrevo hoje dentro de
sal marinho, sinto-me
transparente e leve

toda a cor e tons dos cantos
do poema

o atelier prepara-se
para mudar toda a sua
estrutura

sonho com um atelier no
13º andar ao pé do mar
não escreveria diferente
como posso dizer


José Gil

suavizar com tacto



(fotografia de manuel alvarez bravo, "fruta prohibida", 1976)


no Porto, outrora era apenas o vinho incandescente
as uvas não falam, ninguém pode ensinar o sabor
delas, nem do hausto Deus, quando debruças o teu
peito sobre a canastra clara sou eu que espero, o
açúcar em ponto de sentimento, o desejo, o corpo
que defendo, dentro da palavra. Que amor ouvirá este
Outono, no tremer das pernas. eu amo tudo o que é vida
o aroma dos lábios na pele abafada à garra
do silêncio que a compromete. Melífluo beijo…
Baloiça o desejo na ilusão dos corpos deslumbrados à sua chama,
elevados à mente que os abraça.
O rio que passa e corre e traça a fé de um abraço,
A fé de um amasso…
quente, forte, seguro,
Suspiro aceso ao prólogo de nova viagem
a minha nudez no incêndio do
tacto, nas rampas da voragem as
ancas encontram-se tocam-se, trocam
pelas línguas, abrem o mel e o leite
os barcos e as mãos sobem as costas
até ao peito, passa-se a noite a acordar e
a dormir, as mãos procuram o primeiro
gemido, como um piano, como Chopin
o trabalho do corpo porque o amor chega
o meu amor está a chegar e tudo
realmente acontece, depois as canções dos
ritmos dos corpos no chão plano e na parede
devolve-nos à terra dos lençóis, ao brilho
de um café, a onda cheia com um pingo
na avenida da foz


José Gil

poesis



(fotografia de peter beard, "francis bacon", s/d)


(Poesis doctrinae tamquan sominium)

Francis Bacon

tenho o poder de despertar a vida
alma de criança da natureza, na
persuasão, adivinhação e profecia
quem conhece o teu corpo de flor
kalevala no jogo combinatório
sobre a “pedra de canto” sou o
imprudente competidor no
desafio de fanfarronada ou
a jactância da lua na noite
“antiquíssima e idêntica”
no meu ordálio de insónia
serei vates, o possuído
deitado na relva da lembrança
sha´ir(1) bebendo o hidromel para
ser o poeta vivo kvsair o mais sábio
mistagogo, kulredener(2), thrul (3)

tento o lugar do património
o jogo da poesia – palavra
tempestade de nomes vértice
profano de quem vive solto e branco
como só as veias em tronco onde se
vê a ave que ocupa a terra inteira
as harmonias de um punho fechado

lento como o sangue, uma teia de hortelã
no fundo do umbigo rosa e negro, o alho
do esquecimento latino tenho um poder

José Gil


(1)sabedor segundo os árabes antigos

(2) orador culto

(3)actor de drama sagrado

quarta-feira, 6 de outubro de 2010



(pintura de chris acheson, "vandolls", 2007)

a actriz avança no nevoeiro que se levanta
traz a sua luz de glória perde-se no “não
se paga. não se paga”, avança como um navio
no cais, grande e leve para navegar do guincho
ao ginjal. a actriz viaja no meu país de
remendos e de pedras, meu país sem água
e sem sede e sem fé – tudo dorme na flor
da inveja e do ciúme, o país não pode produzir
a beleza nem a sua dor fina. dobra irmão o bico
público, à claridade imunda dos parasitas
mediáticos da verdade absoluta. “deve ser assim”!
"assim não”. todos se sentam no seu banquinho de
excelências e vinho. meu país indeferido e infinito
que levanta a poeira para lá da língua de todo o
mundo. e nada. sintra é maravilhosa na primavera.
como o Algarve

a actriz morreu
no total desprezo ela ainda avança no palco dos
que ficam, pequenos navios ao largo do tejo
barcaças. se eles andam eu já vou neles
adeus amigos, pátria dos amigos, enfia-me
a faca pelas costas como uma ousadia contra o
esquecimento. avanço já nos ribeiros do meu amor
pequenino, vê como voo na pátria doente da erva
daninha e dos cigarros amarelos

a casa abandonada para novos esquecimentos

esqueço-me de mim no navio que deixa lisboa, a capital
o sol nasce ainda devagar chega a actriz do “não se pode
exterminá-lo” meu país ao pé do intermarché, os passeios
cheios de carros e de cegos. bonita é a fuzeta, partiu-se o
aduelo, a moldura da porta aberta.

não sou escravo do poema. trabalho - o há três anos
no dia em que sobra o pão a floresta da esteva
a flor da estepe, o teu figo, pela flor de cada
fruto meio fechado basta-me a flor do teu mamilo
adoro a minha pátria dos artistas doces e das
cobras – compõe casas simples e pequeninas
o milagre da pátria está para lá da alma certa
entra josé
sai josé
o tempo avança


José Gil

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

o teatro fechou



(fotografia de cornell capa, "marilyn monroe during the filming of the misfits" (1960)


bowling claro nas baixas
do tempo, interior, até
cortar as linhas das palavras,
o teatro é uma máquina do
controle o controle do controle
entre as rosas e os girassóis

o bowling é um espectáculo
frio –“ eu vou para a rua
mas tu pagas” diz o discípulo
ao professor – não há teatro
tão forte, destrói, o acontecer
violento como sedução,
aguardente de milho, um resquício
o funcionar holistico da hortelã
perdeste ainda no teu bowling

José Gil

aporia



(fotografia de thomas billhardt, "altenburg" (1964)

“descubramos os becos sem saída
Descubramos a nós mesmos
Reconheçamos as nossas próprias aporias
E sejamos dignos Apóricos !!!”

André Bonfim


Exsudavam na resina dos olhos
Quando por dentro chovia e o
Mundo nos roi em volta de
Um beijo – o mármore dos
Corpos – na aporia própria

Vibramos depois o outro
Silêncio da tua fuga – fico

Disto não haverá saída
Distorcendo palavras
Glossálias frescas logo
De madrugada com o chocolate
Quente e o comboio da linha do
Sado ainda madrugada

Alguns dormem outros vazios
De pensar em tudo o que os rodeia

José Gil

terça-feira, 28 de setembro de 2010

carbureto



(pintura de willem de kooning, "east hampton £4"


Os mosquitos voam em roda
Ao pé do escuro e do carbureto
No lugar da cena - é a feira
As gambiarras telúricas na sua
Verve, vivem e olham o teu
Passar de pequena ave – onde
Vai a tua valsa e o tango – dancem
É a festa, dancem comigo até ao esquecimento
Gostava de ver toda a gente sobre o palco
Dança entre as letras e as cerejas
Leonard Coen em pedra sem
Público – apenas um teatro de
Ópera com bonifrates
Um calor de forma e cor
A textura da tua
pele

José Gil

a memória dos pássaros



(pintura de sam francis, "santa monica I", 1972)

Pêssegos em calda degrau a degrau
na escadaria da catedral

O vento brisa fria da noite no começo
do Outono, procuro-te
Entre as velas e a fruta alma ausente,
Tu ainda corrias ontem nas estradas
Junto aos baloiços. Agora mais nada
Pêssegos em calda na mesa quadrada
Toalha aos quadradinhos azul e branco
Não te encontro a cadeira está vazia
Procuro a mesa de mármore de madrugada
A única onde não se fala, a cobertura do mundo
Pai, são palavras e a memória dos teus pássaros

José Gil

segunda-feira, 27 de setembro de 2010

Protótipo textual



(fotografia de judith s. larsen, "ermes", s/d)

oiço-te na delicadeza linguística
o texto já azul - ferrete salta
com os sóis do teu umbigo rosa
chegaram-me tarde as asas de um
anjo, a pedraria é de jaspe coberta
no chão apenas dizes o que já não
oiço emergindo do mármore cru

um pouco mais à frente é o lugar
onde nasce a fonte do século dos
beijos num prototípico(1) teatral
em que levanto o teu corpo
até aos olhos o momento
do seu ser epistolar


José Gil

(1) J. M. Adam

segunda-feira, 20 de setembro de 2010

dialéctica do esquecimento



(pintura de zhong biao, "the beginnings of chaos", 2009)


(Adorno, Damásio e Horkheimer)

aurática a forma, direi dos teus seios a identidade
com os meus óculos verdes de aporia, destrutivo
entre as alfaces do coração, as veias da folha
nascem neste campo as tuas pernas, para ser mais preciso,
vou tecendo dois eixos, escrevo o impacto dos teus mamilos
na minha língua de mel, digital como vamos entrar
na luz, o advento do tempo consciente

voamos com lucidez e amamos o jardim imenso
a carne e a relva na pessoalidade da metáfora
si traduz o teu sentimento próprio aberto o
pano de boca a luz ilumina-te os pés este momento
o limiar que é fácil escrever, investigando o mel

José Gil

domingo, 5 de setembro de 2010

a flor do sal



(pintura de norman bluhm, "study #12819", 1969)


outros mesmo ali na varanda outros aí
no fundo das salas a ler o que nunca
se escreveu como rotina, a flor do sal
abre a ruptura de quem faz da poesia
o ramo das ervinhas e gosto dos sentidos

amo a dona salsa e as suas utilizações
nunca esquecer , um dia inteiro a comprar
o que vamos comer, há medalhas na cova
da moura e na minha procura muito milho
para a cachupa morte ou vida, vida adversa

não há silêncio nem de dia nem de noite
dança-se ,ouve-se as músicas de um lado
ao outro nos limites do comboio e da
auto-estrada, dou-me a garças e serpentes
enquanto sou eu serei do avesso a madrugada


José Gil

sexta-feira, 27 de agosto de 2010

o homem da moto



(desenho de ross bleckner, "FSD", 2004)


correr, correr, correr contra a parede
na parede do país pela queda lúcida
os anjos sem voz, a música do ar
quando na estrada agarrei-me à vida
tanta árvore, tanta vida quando a
luz acontece o silêncio dói no suplicio
um saleiro transparente, salsa, coentros
um dia feliz é o tempo das vacas
a ilusão de que não somos animais
a minha vida nasceu para plantar
árvores e cuidar dos grandes cavalos
da terra e das conversas saímos
do céu alados – uma estrada grande
entre os cheiros da cozinha, nasci
no fojo sei, junto ao mar às ondas
os peixes cegos na pontualidade
da série ilimitada eu sou a casa
grande a pele de cor violeta verão


José Gil

quarta-feira, 25 de agosto de 2010

corpo



(fotografia de tom baril, "brugmansia, 10 flowers portfolio", 1998)


1.

nuvens em castelo na lua do
lado do sol no cimo do monte
chegas devagar, vens nos seios
claros e negros do meu olhar
e memória – os arqueólogos
como uma sereia dos montes
alentejanos – musa que chegas
ao algarve com a voz inconfundível
da paz, apenas vejo o mar, as ondas
serenas quase mar feito, amo-te e
espero a negrito do teu acompanhamento

2.

os bons segredos das tuas ancas
devo partir e ficar longe
a arqueologia preventiva
amor executado no principio
condicionado às cerejas cristalinas


José Gil

sexta-feira, 20 de agosto de 2010

nova aliança



(fotografia de henri cartier-bresson,"brie", 1968)


O futuro da relva já sinto a percorrer na coerência
Sinto-o a percorrer na coerência global
Uma mão dupla inteira
Na árvore negra da verdade
Física e metafísica tu que apelas todos os dias
Só te vou conhecer retrospectivamente
Na coerência global
Há ainda uma síntese pessoal embebida na poesia
Já não escrevo. Apenas me deslumbro da caneta
Sobre a folha de zinco ao sol
Estamos na “Nova Aliança”(1)
A relva a fundo nos lábios
A flor do taoismo da física
Sei que me vês mesmo com distância
Que chora da física contemporânea
Do misticismo oriental
Amanhã é sempre tarde de mais

José Gil

(1) Ilya Prigogine


José Gil

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

beleza digital 3D



(pintura de dan mcdermott, "maralyn", 2006)


Aos perfumadores de cristal
Ao José Félix e aos cinco poetas

O centro é o próprio verbo do
Ovo escalfado de madrugada com
Chocolate e menta e perfumes de
Cristal depois as escadas em caracol
Prolífico, a misteriosa beleza digital
Ela prepara-se para ti ou o trabalho

Avança muito cedo pelas ruas
Vai abrir a bilheteira do cinema
Para as crianças, chegam os rebuçados
Ela rodas as chaves, as salas abrem-se
Depois prepara a primeira máquina
De pipocas, o filme é um pouco
Mais triste como a hortelã na relva

José Gil

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

cotejo do anjo



(pintura de michael argov, "young woman at the port", 1954/1955)


tenho que tocar-te toda no
cotejo dos anjos, outra
floresta nua
ardendo como
outrora nas cordilheiras
de Agosto em fogo

seta despida na penumbra

deixo-te três espelhos para
te conheceres, toco
o do espírito como o
principal - aporia de mel
o poema da penúria
rotativa, na sua territorialidade
flexiva,vibra agora
o sono das pedras
e traz a erva para
o centro da cidade
eu sou o teu hálito
canta-me a tua
redonda mão


fica na janela
estamos sós
no bairro

José Gil

domingo, 15 de agosto de 2010

como posso dizer



(desenho de marc chagall, "mounting the ebony horse...", 1948)


trago dentro de mim
a bicicleta muito leve
uma cremalheira de pêssego
cremoso
roda dos pés ao cabelo
tem mais rodas que
tipos de pele
trago essa dificuldade
a pele é toda
diferente de todas as
pessoas
luz light e rasteira no ar
fresco na noite quente
cenoura, laranja, meloa

escrevo hoje dentro de
sal marinho, sinto-me
transparente e leve

todas as cores dos cantos
do poema

o escritório prepara-se
para mudar toda a sua
estrutura

sonho com um atelier no
13º andar ao pé do mar
não escreveria diferente
como posso dizer


José Gil

amor escalfado



(desenho de marc chagall, "bay of angels", 1967)


“Nesta lista - como num rio - correm as veias dos poetas, nas
pedras que rolam e rebolam.”

Abilio Pacheco



acordo no amor escalfado
um dia vai aquecer mesmo
cedo ora desliza para um
lado outro desliza para o outro
nesta praia branca e de brisa

estás bem colocada ao centro
da ribeira d’ água a fazer
de forma baixa a hotelã

o gelado de frambroesa
tem um pico da tua erva
como chegar à primavera
um pouco de torada
com doce de gila
à roda do mamilo

a violência do alecrim
e mangerona

José Gil

o fogo



(desenho de louise bourgeois, "anatomy (detail)", 1990)


a tua pele bebe o meu lábio
a língua fendida em duas
junto à fonte da ribeira, dói
crescer no olhar a pouca
distância da ilha do pessegueiro
no umbigo da uva e do fogo

há outro fogo em outro beijo
as palavras espalham-se por todos

temos esta terra. é nossa?
é vossa - correm cavalos rápidos
a arder de uma ponta para a outra

dá-me a mão, trinca ainda a língua
cheira a incenso, vamos abrir
mais um caminho, o fogo
paciência dentro da fruta

José Gil

domingo, 1 de agosto de 2010

as papoilas



(fotografia de george holz, "mother of all living, la primavera, mexico", 1996)


No muro rebolam bem as pedras
Viveria bem entre elas e as flores
Calmo uivo alto ao mundo que passa
No muro rebolam as pedras e o vermelho
Vivo entre elas e as papoilas como um santo
O mundo já está todo branco, procuro-te

Onde estás? Chegas-me com o teu sono e vibro

José Gil

segunda-feira, 26 de julho de 2010

árvore 2



(pintura de melissa doherty, "into the woods, nº 5", 2008)

tomais-nos por poeta e poema
os olhos fixos foram feitos para
a árvore certeira, a segunda do
lugar público, saltai das laranjas
a paz seja convosco por isso
deixai-os fixar a paleta e o
aroma da folha que estima tenho
por sevilha logo de manhã as razões
que tenho para a escrever

que fizeste da tua juventude?

devo
acreditar que o incorpóreo
imalterializou-se na tua clareira negra

vem sempre dar a carne o sabor da foto
e uma onda de mistério onde tudo se
sonha, repousa no movimento
do esquecimento com o corpo
encaracolado no seu abismo verde

José Gil

esquinas



(instalação de david byrne, "nest", 2007)


Escrevo na sombra da folha azul
Ganho o corpo sobre ela, cantando

Gostaria de passar a ponte
Naquele cavalo cor de mel na cor do teu corpo
Só o solo levanta a sombra até aos olhos
não posso falar em esquinas
Que não conheço despojado
e inteiro com este presente eterno

é tão fundo que cintila nesta
projecção

José Gil

segunda-feira, 12 de julho de 2010

eu subirei os degraus da árvore



(pintura de ivan bazak, "untitled", 2005)

eu subirei os degraus da árvore onde crescem os teus cogumelos rosa
e o violeta do teu verniz tingirá as nossas mãos, devagar, tudo
vermelho e negro entre as ondas e o teu corpo e os barcos lilases
como a piedade e a cruz rubra do teu olhar, perde-se tudo onde se navega
à vista – eu subirei ainda os degraus do oceano com árvores

ficará o meu amor a boiar nas minhas ancas bem seguras e as algas
roxas aprenderão a amar e alguns violetas se fecharão em tristezas se com esse
dia a dia de viver tristes. alguns estarão assobiando em suas portas ao passar na avenida do mar eu cantarei a tua janela de persianas rosa na casa rubra que caracteriza o teu quarto. Vê amor o sol que nasce no teu coral negro no urdir deste tempo entre as quatro árvores e o céu muito verde e cinzento de sol

respira, ouve as flores da paz, os gigantes da serra no fundo do oceano como
um bosque, eu amo-te dolorosamente na linha da distância só sei que Janeiro
nasce no fundo das ondas onde se desenha o sexo com pequenos búzios redondos

José Gil

sexta-feira, 9 de julho de 2010

pela noite adentro



(pintura de gino de dominicis, "senza titolo", 1998)


pela noite adentro
trazes os cotovelos
o sol visado entre
as tuas doces pernas
com roda e o seu valor

a cor do teu corpo
deslizado e escuro
onde crescem as raízes

danças a minha cegueira
uma dança nua na praia
avanço no teu corpo
lua nova avanço com uma
mão cheia de areia fina
um movimento errante
e vento negro dalgum vulcão
movimentam os montes das
tuas ancas, espelhos negros
numa luz de surdez. os cegos
encantam-se com os corpos
que conhecem pelo odor e pelo
aroma e tacto, as orquestras de
cegos muito leve o calor
junto ao mar azul e crespo, fica
novamente enlaçado no meu

será que o meu amor
ouve a minha voz tão longe sente
sou a lâmpada, as palavras voam
e só ouvimos os pássaros


José Gil

domingo, 4 de julho de 2010

corpototal 33



(fotografia de elger esser, "arromanches-les-bains, france", 2009)


“Eu vi a luz em um país perdido”
(In Clepsidra de Camilo Pessanha)



Ele é um tigre. O papel da fonte.
entre a água e a folha
se procuro a noite
ninguém fala dele
ocultamente

O país de minhas irmãs suavemente
Meu pai escrevia
Meu irmão escreve

Eu apenas amo tranquilamente
a ponta leve da caneta
na brisa do Funchal
maçã e laranja
formam o seu
pomar

Não sei em que mês ainda estão
O pensamento renasce
com o dia

sei, já sei que ele é o tigre de papel

José Gil

suporte



(fotografia de robert mapplethorpe, "bread", 1979)


deixei o pão sagrado com queijo e ervas
à porta da sé enquanto rezavam o rosário

tu lhe chamas pão da tua terra, Madeira

morreu alguém, saltam os gritos e a oratória
estou agora no fogão a escutar a tua voz na minha
alma, fala mais alto, assobia a água quente do chá
de menta e hortelã para comer com um gelado de
baunilha e frutas cristalizadas e passas e cerejas

estamos no verão, só o sol queima, ninguém vive
connosco nestes momentos. Nem o sol nem a lua
apenas a casa e a bola de carnes, não há guerras
aqui próximo, isso nem falta a broa nem os teus
seios fartos, apenas o céu suporta a força do seu
azul, pesado mesmo rente ao longe no mar e na terra

és tão linda azul como o sol do mar, a noitinha
distante, o pão abre-se com a mão e cachaça

à porta da capela antes de atravessar as
estradas rápidas de esmeraldas para
o meu coração com asas/vento meu sangue de uma inocência de liberdade

José Gil

segunda-feira, 28 de junho de 2010

cedro



(quadro de ed douglas, "renaissance bathers", s/d)


o cedro no líbano a curva ascendente do mundo claro
um dia seremos serenos quando passarmos as portas

guardo as palavras no solo claro da rua, como o sol
sobre a terra no invento do silêncio, vivo, respiro um
pouco de areia sobre a platina do dia o teu corpo

terra pura, terra sagrada, um poente de Deus nas
quatro alas, vibram os quatro leitores das alas é o
mesmo livro ou outro que é o mesmo do outro

a palmeira baixa a sombra e cresce vigorosa

não sei afinal nada

meu pai dizia-me
viaja

José Gil

segunda-feira, 21 de junho de 2010

sete a zero



(fotografia da vitória de portugal, retirada daqui)


vi-te, ó pretendida vitória
como o diamante, oiço-te em
todas as cidades e até nas
árvores – ouvi-te num país
sofrido – cerceastes o mais
pobre, despido ficará
cristiano como o leão da
festa com um pé e uma
cabeça bem clara

cavalos e serpentes desenho
em toda a relva até à raiz do
canto que inicia sempre a
folha de zinco, o espelho
tiago será o outro nome que
marca a voz crua

surgem imagens verdes do arbusto
da água – quero-te rio
inaudível, a minha cabeça
sonha – o que respira
unânime Queirós

ele corre áfrica como a alba
ele é o percurso que nos fala
outros nomes da cratera louca
sobretudo o futebol como o
cristal da sua arte

José Gil

sexta-feira, 11 de junho de 2010

rialva



(quadro de mary bourke, "island neighbors", s/d)


sinto o leve peso das telhas da água
a casa está nua e vazia – pode ser
da minha cegueira, onde as crianças
brincam com os patos e os cisnes do
jardim real, correm nos corações abertos
letra a letra sempre dita antes do
primeiro sono e uma breve brisa na
janela destroçada e sem vidro

chegarei a belver – rialva a noite
deitada no pasto junto às lojas
voo para o outro lado do mundo

muito calor de girassóis primeiro
amor na pata negra os dedos ligados

josé gil

domingo, 6 de junho de 2010

poema para carlos roldan



(fotografia de bailey davidson, "nature prevails", 1997)


O corvo ruivo e negro na luz do calor das castas do vinho
A voz dada às palavras já rosadas, amo os seus cones negros
Já não chego a partir, os corpos já se conhecem como o vento
Livre no azul claro do luar

Voai na direcção do jardim da casa
Segura a mão que segura o sangue
Detém os teus dedos desesperados

És já a cotovia pela manhã, uma casa
branca, diria, a casa redonda como um eixo
um corpo no outro corpo, o sol da vida

o terraço da casa é sobre o rio
deixa passar a barca
todos iremos por este campo

José Gil

sexta-feira, 4 de junho de 2010

tulha



(fotografia de pam moxley, "chase", s/d)


Deixou-me sem carpir e arregalar os cabelos
Atiro as palavras como rasoiros de tulha
Não sei para quem – as letras vão
Reforçadas de pez - ando pelos caminhos
É feriado, senhora da luz que nos alumie
Voam os pássaros por baixo dela em ascensão

Completar um santo é uma insignificante
Construção de um livro, passam-se horas
Pois se a largaram não se perdeu nada

Na tulha o cavalo de asas foi selado da
Melhor cernelha, despede-se como uma
Flecha aberta duma galopada subiu
às costas do céu, lá onde vive outra
Geração – a globalização acabou

José Gil

quarta-feira, 2 de junho de 2010

poema de bambu



(fotografia de paul caponigro, "glencar falls, co. sligo, eire", 1967)


deixa amor a mão caminhar
como um diamante de carne
muitas vozes juntas
para que algo aconteça quando
tudo fica de coração incompleto

o ar está cada vez mais leve
o amanhã é um desejo e por isso demora
Mar eu queria ser o mar e chorar como ele
bem dito o céu e o fado

minha é apenas a ave
e o ser dela as lágrimas
das asas seguram o azul ao
céu.


José Gil

domingo, 23 de maio de 2010

corpototal 32



(fotografia de ruth bernhard, "cross section", s/d)


ao Constantino


a tua distância simples desperta-me
e salta ao mais alto da onda fresca
subo-a como o vento e a vela

trago apenas o pano fino da bandeira
corpo total como uma mão de
respiração, de súbito entra no palco
um barco de lábios para navegar
um corpo de ondas a maturidade
do desejo desembrulha a solidão das estrelas

é tão difícil cortar o tempo sozinho
rolos de manga e laranja são o sabor
do marco subtil que chega nos teus lábios

é a imortal cavidade da fruta nos seios

José Gil

o amigo



(fotografia de eliot porter, "llo molo dancers, lake rudolph, kenya", 1970)


Dobro o lugar onde o amigo chega
Tenho o café novo logo para o acender
ele voa, voa e senta-se em toda a cadeira

O órgão continua a tocar em qualquer
Catedral e a esplanada da pastelaria é fresca
E trémula nas suas flores imensas

Há muitos anos que passamos
A tarde o sangue o suor e o ar

José Gil

fractura tropical



(fotografia de amira fritz, "fuchs und gans", 2008)


o nosso amor é já lâmina de luz
de todo o mundo que dos rios,
que fogem pelas ruas frias
nestes dias como o gelo

dança, desliza amor na tua flor de
aço onde o vidro abre a febre
na sua árvore – quero-te meu fruto
tropical. nas estantes das
palavras curtas e claras

José Gil