sexta-feira, 8 de maio de 2009

sobre herberto hélder e josé félix



(pintura de ronald brooks kitaj, "chimera", 1980-1981)


"mesmo sem gente nenhuma que te ouça,
poema intrínseco dito a português e dentes,
a sangue desmanchado,
com a estria lírica a fervilhar de riscas
rudes, frescas, roucas,
tu que como que iluminas pela boca fora" (1)

herberto hélder

“o sangue que me escorre da boca lassa
é uma frase que atravessa os lábios
como a águia de bonelli no voo picado sobre a presa.
coagula a palavra na voz surda, absurda
como a dor no baixo ventre ─ do parto”

José Félix




rasga o sangue que te prende e ninguém vê
ao lugar mais alto de Guernica de picasso
da terra presa ao cavalo do cavalo
preso à luz e de universal português
este canto ibérico na linguagem
sem desenho, na mão sem corpo
sobre a areia, escrevo os répteis
e eles avançam como ratos cegos
na rota luz do esburacado casaco em
que me venço e avanço de arrasto

duas negras alvas, ou uma apenas na
dolorosa distância dos continentes
contra o suspiro que engole a lágrima
contra a língua a fronte o pulsar do sangue

quem sou eu que não desisto na pobreza
extrema do cérebro que se abre sobre a
folha sem nada nem flor nem semente
no crânio dócil das bolas encarnadas para
um pé que ganha o gosto de andar e os
dedos que se prendem à perna para correr

adere o osso ao músculo são quatro ou cinco
cruzados entre os ligamentos do texto, cruzados
os ligamentos das letras às palavras, das palavras
ao oco cérebro, dos sentidos ao poema, é este
o reino dos ratos e das ratas debaixo das mesas
no murmúrio das portas fechadas, sou português de
gosto na muralha mais seca dos sobreiros por dentro
das frases, escrevo como quem cega, sem obstáculos
onde me veja e perto do ar sem respirar corro

trago o polvo debaixo dos braços, as ventosas
junto às costelas, e o poema solto bem preso
ao lugar do papel em toda a batalha da hortelã dos
macios mortos entre dentes, falem, gritem digam não

pousada a palavra é um pacto entre o poeta que vence
a rusga e foge com o carro branco da luz e se espelha
na arriba da praia contra o veneno da vida rasteira

salta herói de papel destes dias de festas no centro da
coluna, onde ninguém chega com as chagas do canto

vibra cão que mordes o cavalo que transporta corpo
morto dentro do bosque dos nervos acesos, berra camaleão
no bruto roçar dos carros e das carretas do rumor

viva a roda única do calendário dos meses, escrevo como quem
sopra o último sopro ibérico, da gala da pedra sem música

bate pedra na pedra do crânio pelo fogo
escreve ou risca português com hálito de casa
sedentário preguiçoso como a cobra

abre a terra onde avanço com o sangue entre os dedos


José Gil

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