domingo, 23 de maio de 2010

corpototal 32



(fotografia de ruth bernhard, "cross section", s/d)


ao Constantino


a tua distância simples desperta-me
e salta ao mais alto da onda fresca
subo-a como o vento e a vela

trago apenas o pano fino da bandeira
corpo total como uma mão de
respiração, de súbito entra no palco
um barco de lábios para navegar
um corpo de ondas a maturidade
do desejo desembrulha a solidão das estrelas

é tão difícil cortar o tempo sozinho
rolos de manga e laranja são o sabor
do marco subtil que chega nos teus lábios

é a imortal cavidade da fruta nos seios

José Gil

o amigo



(fotografia de eliot porter, "llo molo dancers, lake rudolph, kenya", 1970)


Dobro o lugar onde o amigo chega
Tenho o café novo logo para o acender
ele voa, voa e senta-se em toda a cadeira

O órgão continua a tocar em qualquer
Catedral e a esplanada da pastelaria é fresca
E trémula nas suas flores imensas

Há muitos anos que passamos
A tarde o sangue o suor e o ar

José Gil

fractura tropical



(fotografia de amira fritz, "fuchs und gans", 2008)


o nosso amor é já lâmina de luz
de todo o mundo que dos rios,
que fogem pelas ruas frias
nestes dias como o gelo

dança, desliza amor na tua flor de
aço onde o vidro abre a febre
na sua árvore – quero-te meu fruto
tropical. nas estantes das
palavras curtas e claras

José Gil

terça-feira, 18 de maio de 2010

flui, flui no espaço onde o corpo entra



(fotografia de marie taillefer, "the green room", s/d)




Flui, flui no espaço onde o corpo entra
Saltei, era um raio de luz intenso de um sol
Brilhante junto a um barco, era a que
Importei, sou eu, passou, sou ainda a tua
Voz para lá da fresta fresca do pôr da lua

Atravesso uma folha de aragem
Outrora perguntávamos aos vizinhos
Pelo tempo, pelo vento, pelos filhos

Uma abobada em vertigem de meia
Luz, fala e estás aqui comigo no meio da
Hora tranquila tem medo da cintilante paz

José Gil

quinta-feira, 13 de maio de 2010

zaza




(fotografia de angus boulton, "untitled 6.4.", 1995)


(Hospital Amadora Sintra
Medicina VI -12 de Maio 2010)



ai de que tem de trabalhar por dentro da hortelã
o seu dizimo. Não és também tu o que cortaram
a orelha cá em baixo entretanto a água corre
mais que o sangue no horto das pernas e pedras

ora é feriado e a multidão avança sobre os doentes
não és o discípulo que faltou na ruína do aqueduto
entre Sintra e a Buraca interroga-me e interroga-te
abertas salas claras, gente de tecido branco nas traves
reais, onde as janelas estão rasgadas a todo o sol

José Gil

Cântico de mar



(fotografia de dorothy bohm, "the seine and île de la cité", 1955)


o que oiço entre portas, o teu riso
breve e ao lado o jardim e as papoilas

toda a juventude corre as linhas
do coração – o último filme a preto e
branco nada só o nó como o umbigo
a roda fraterna de todos os dias
os carrilhões da catedral na alma
maior do reino onde se conversa

José Gil

quarta-feira, 12 de maio de 2010

o poema branco



(fotografia de manuel alvarez bravo, "espejo negro", 1947)


mais além a harpa, queixa, fuga, fuga
vinda a verdade na representação do
bem e da alma as luas azuis mais rápidas
palavras num caminho sempre incompleto

as tuas mãos largam as cartas negras e
talvez o beijo caído do tugido do pó
o discurso carregado de culpa com a sua
cauda marinha minha sereia pretinha
constelação da dor e da consolação
teus cones negros só por um bater de
pestana – quero repouso na fuga

sou caçador do desassossego

José Gil

corpototal 31: um linguado de areia



(fotografia de horst p. horst, "mainbocher corset, paris", 1939)


estou na varanda do tejo
ainda não anoiteceu uma súbita
nuvem clara, do ar da madeira
uma pequena casa de erva, e cerca
onde nos chega é a claridade o infinito,
de ambos os lados do pó dos seios

quero apenas um pouco de luz
os mamilos sobre a pedra do rio
as janelas abertas pela manhã
a lâmina de água fria, os teus olhos
o tempo de revelar a tua vela

José Gil

segunda-feira, 10 de maio de 2010



(fotografia de richard avedon, "rudolf nureyev, dancer, new york, 1967" (1967)


(baseado em Augusto Strindberg)



terei do outono o teu veludo
o cinema, o absurdo o terreno
é tudo e nada no teu jogo de ténis

tudo pode acontecer, versos rápidos
uma ideia de vidro ao teu retrato
sobre a mesa junto à manga, à laranja

mostra o desequilíbrio do teu corpo
trocas as pernas entre as maçãs
verdes e o pombo, a página presente
em palco para escrever actuante o
lento lápis acaricia a fechadura

José Gil

segunda-feira, 3 de maio de 2010

ao mar



(fotografia de george hoyningen-huene, "pool in the sultan's garden, marrakech, morocco", 1934)


paro em flor sobre um só pé azul

a lírica vegetal na mortal iniciada
falamos ainda da neve que pouco temos
cintilando com o sol atrás dele e vós
a secreta visão fica no outro lado do
planeta no vento – dor essa água
azul-pálida e o corpo entra vermelho

exerçam todas as curas do mundo e
do tempo, quero uma conversa que
não seja de agonia para a boca dum deus

pardais nas campinas, pássaros nas
árvores uma lágrima de violeta

paro em flor sobre a corola de veludo

josé gil