quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009

crash 33: televisão



(fotografia de al magnus, "la pose", s/d)

o cimento cinzento e harmónico do animal suado
avança com as patas pesadas da besta faminta:
esmagam, acordam como vampiros o espectador que
constitui a televisão. como o caracol real ao
lado do caracol chinês, vítima branca e azul
cúmplice, ele cria audiências rápidas de imagens,
abre e fecha o imaginário, espelho meu. o teu seio
verte o mel do verbo, a cobra escreve devagar no rato
“a televisão é a boca do mercado, é a sua fala, a fala
da moeda”(1) para um concerto de oboés e trompas

o animal suado já não anda, corre sem asas da rua
mais fria para o gelo ríspido a água e o leite, o escrito
e o intencionado, o chá escrito de hortelã à deriva na
água quente, a estranheza e a desagregação das
consciências, as marcas da moda vestem a televisão
do que vou vestir a seguir as agruras das folhas de
papel dobradas em mil bocados as memórias e as
histórias concentradas nos traços desenhados das
estradas e dos caminhos por onde passa a árvore
digital, o rectângulo mágico novo membro do
agregado familiar dramático, ela muito elegante
vestida de noiva ocidental ou acidental ele de fraque
ambos malas Louis Vuitton, canetas Mont Blanc, relógios
Rolex. O master Deus da verdade e das pedras
ornamentais e kitsch – a verdade o que ele diz eu
não digo senhor dos detalhes de pão com canela,
o animal constrói dentro da jaula com plasma gigante
uma casota e dorme. Sem o negro branco dos jardins.

A televisão é um café, um restaurante, um infantário
um hospital, um abrigo a televisão é a nossa única
casa mesmo quando desligada e escondida na idade
do armário nas conversas dos colegas e dos vizinhos
“estranha-se e entranha-se” nas redondezas e nas
proxémicas com alteridades de excepção em nome
do interesse global.

Mesmo sem vermos televisão, os vizinhos e os colegas
da mesma flor rosa não falam de mais nada e sentam-se
fardados do único conhecimento assertivo pelo cabo
“Take it,the price is good”. Respiração difícil
antes de dormir. O mar brilhante prata do néon dos
malabaristas, ilusionistas das entrevistas sérias e
politicas que arrebatam aplausos comprados ou
gravados depois de cada manipulação pura e cruel.

Impressiona a destreza e execução fatal destes artistas
alguns muito jovens, contorcionistas, yupis, pirilampos
académicos espalhados por noticiários repetidos e
entrevistas que riscam os vidros transparentes
de nova iorque, as suas mil luzes e o leite
espesso da lua.

sem ter um pensamento paralelo uma coisa fresca
ama-se o que é estrangeiro, não somos desafiados
e perdemos a imaginação, apenas repetimos a chave
e o rio, a sageza do olhar minimal e difuso, ossos de um
oficio vegetativo. o locutor leva muito a sério o que diz
e é sério, eu apenas pretendo ser sério, sentado nas
horas perdidas, nos filmes falsos sobre os pedaços da vida
patológica, os enganos da razão. crash

viro o volante ao contrário e monto aí uma televisão na
minha bicicleta amarela, esqueço até o prazer do vento e
da chuva na face nos walkmans para o meu amor música
de Mahler, Bach, Wagner – resisto aos afectos mediáticos,
sou fiel, choro e escorrego facilmente nos filmes
da minha vida como uma novela sensível e frágil.

a tv incorpora o público cansado e amestrado como
tremoços do real, o quarteto de cordas sensoriais
num espelho deformante. Voo na pesquisa narcísica do
signo como espelho. O fotografado não silencia, é mudo
na sólida estrutura de suporte na mimética humana
da língua adâmica. O aparelho em folheado de madeira
antiga em busca de magnólias. Nenhum pensar agora.

José Gil

(1) Muniz Sodré.

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